21 de dezembro de 2011

Esporte & Racismo

Por Ricardo Luiz

Reflexões históricas sobre a questão da Inclusão Social
 
É senso comum atual o mote político e marqueteiro do esporte como inclusão social. Mas é preciso tratar aqui de uma questão nada explícita e muitas vezes até desprezada neste contexto.  Afinal, quem e quais são os inclusos?  De qual forma? De qual e para qual sociedade ou casta da mesma, e por quais interesses e objetivos?  

Esporte na Antiguidade
No esporte, assim como nas mais diversas áreas da cultura humana, observamos historicamente sua utilização de propagação e reprodução das ideologias vigentes através do mesmo sobre as sociedades diversas em sua prática e sua coletividade. Expoente das ideologias de poder desde a antiguidade, o esporte atuou como reprodutor da cultura militar na Grécia antiga em seu cerne através das olimpíadas, onde a maioria das modalidades reproduzia a escola militar grega da época (lutas corporais e armadas, saltos, marchas, corridas de assalto, arremessos de lanças, etc). Foi instrumento de controle social das massas populares através da política do “pão e circo” (panis et circenses) dos imperadores e senadores da Roma antiga através dos jogos de gladiadores, atenuando a insatisfação popular contra os governantes através de espetáculos abertos e gratuitos à plebe. Trascorreu a idade média impulsionando as cruzadas cristãs contra os muçulmanos e judeus, representado através das “justas” (combates armados de cavalaria e infantaria) e evoluiu a seu formato popular na idade moderna através dos desportos de competição, atingindo  a sociedade contemporânea   capitalista com seu aparato industrial de mercados de consumo.

No último século (XX), além de reproduzir as ideologias de poder no âmbito social, o esporte também acompanha e se incorpora às transformações sociais, políticas e econômicas numa mesma dinâmica na qual se desenvolvem sua indústria, seu público alvo de consumo, sua demanda comercial e as oportunidades que vinculam sua penetração social pela mídia global de propaganda em massa.

Enquanto alienará as massas, desviando o foco das questões centrais sócio-político-econômicas e canalizando a atenção e o fervor dos anseios populares (sucessivamente frustrados pelo establishment) para dentro das quadras, arenas e estádios (retransmitidos agora em tempo real pelo moderno aparato tecnológico de comunicação e desinformação em massa), também servirá eventualmente de instrumento a alguns de seus personagens que conscientes sobre suas reais condições dentro das lacunas deixadas pelas mesmas tais ideologias (conforme observado por Marx), num revés do qual se servirão do mesmo holofote do espetáculo de alienação para resgatar a tona tais questões veladas à sociedade, em episódios e atos de conscientização individual e coletiva sobre as mesmas.

Com a formação da classe proletária dentro do capitalismo industrial e ampla difusão dos esportes no âmbito social, tal dinâmica ideológica atuará elitizando algumas modalidades em detrimento a vulgarização de outras, conforme valores e tradições da classe dominante. Estarão condicionadas à segregações ou  inclusões diversos fatores, como etnia, sexo/gênero, classe social,  nacionalidade, conforme a serventia de seu caráter às transformações do mercado esportivo.

A questão racial no esporte atravessará e acompanhará a própria história da luta das castas étnicas segregadas em defesa de seus direitos civis no século XX. Americanos afro-descentes a princípio serão vetados das práticas e competições oficiais, ditadas pelas elites sócio-econômicas caucasianas, ao passo em que estas oportunamente estruturarão um mercado de entretenimento e profissionalizarão o esporte, fundando clubes e ligas profissionais.
Arthur Friedenreich
No Brasil, um dos pioneiros a perfurar a barreira do “mito da democracia racial” foi Arthur Friedenreich, quando em 1919 o Brasil venceu o Uruguai por 1 a 0 e se sagrou campeão sulamericano. Friedenreich, autor do gol e filho de um alemão e de uma lavadeira negra, para cometer a imprudência e o delito de vir a jogar na primeira divisão durante vinte e seis anos sem jamais ter recebido um centavo, tinha que alisar seu cabelo no vestiário e se “clarear” com pó de arroz para ser tolerado entre o escrete branco, enquanto a liga metropolitana de futebol carioca (fundada em 1905) ostentava em seu estatuto a proibição de inscrição de atletas negros na mesma. Nos anos 30, segundo depoimentos de jogadores negros atuantes da época, havia uma convenção velada de uma cota permitida de no máximo três jogadores negros por equipe, convenção que só seria rompida a partir do time do Santos da era Pelé.

Relações de poder político-sociais seriam reproduzidas ideologicamente em similar escala também no cenário político nacional e intercontinental através do esporte. Quando o “time mito do Santos da era Pelé” (fundado por uma elite da cidade homônima em 1912) iniciou em 1966 a primeira de três excursões profissionais de exibição que faria pela África nos quatro anos seguintes exibindo Pelé como a maior estrela do esporte de todos os tempos, o “time mito” seria também utilizado por seus “contratantes” com interesses políticos na região, a exemplo da Costa do Marfim, governada por uma ditadura de partido único representante das elites locais desde sua independência em 1960, assim como no Senegal na 2ª.excursão, usando o time por embaixadores brasileiros para promoção de acordos comercias através dos patrocinadores produtores de café brasileiro, assim também como pela Nigéria, com uma exibição contratada pelo governo militar nigeriano em Biafra, ex-província que havia se declarado independente e acabara de ser derrotada e reanexada à Nigéria.

Algumas evidências ideológicas destas relações de poder e segregação racial-intelectual seriam registradas pelas imprensas que cobriram as excursões, a exemplo da africana que se referia a Edson Arantes do Nascimento como “Rei Pelé”, exaltando sua “inteligência e posicionamento eficaz” (racionalidade), em detrimento a imprensa européia que enfatizava exclusivamente sua “magia e seu encanto” (irracionalidade).
Médici e Pelé (1970)
Pelé, modelo máximo e absoluto do “socialmente incluso” através do esporte dentro do mito da democracia racial brasileira, ainda seria vítima de esquemas de manipulação de sua imagem como “ícone do êxito social e econômico brasileiro” pelo governo da ditadura militar brasileira durante e após a conquista do tricampeonato mundial de 1970, amplamente usado como propaganda governamental (política do “pão e circo” usando o futebol como alienador popular frente aos sangrentos anos de chumbo da ditadura) em campanhas publicitárias ao lado do general governante ditador Médici em prol do fraudulento milagre econômico, assim também como por João Havelange para sua reeleição à presidência da FIFA.

Em 1971, ao pronunciar publicamente que estava deixando a seleção brasileira após o tri, notoriamente por questões individuais e pessoais (parar no auge de sua carreira esportiva e se promover na 2ª. fase da mesma como garoto propaganda e empresário), Pelé se viu envolvido num complô difamatório de sua imagem pelos mesmos Médici, Havelange e pela imprensa contra ele. Pelé, que se servira também de muito jogo político (agora através do poder de sua imagem e mito) para garantir a prevalência de sua decisão e autonomia política, declarara seu ato a imprensa em 1976 após toda a fase do embate - “o meu comportamento talvez mostre um caminho a isto”, em referência a seu enfrentamento não violento ao racismo e ao poder dos militares e cartolas, mas como exemplo de êxito civil-social.

Ao passo em que o “mito da democracia racial” começava a se tornar mais explícito e contrastante, o racismo, que no âmbito legal era superficialmente combatido nos países americanos, reproduzia sua prática comum social pela via do esporte, da mesma forma em que a resistência afrodescendente começa a se posicionar contra o mesmo, reflexo da luta secular dos negros pelos direitos civis que se intensificava em meados do século XX.

Nos Estados Unidos, os conflitos raciais se intensificavam na década de 60, assim como os movimentos sociais das comunidades afro-americanas na luta pelos direitos civis, como o surgimento dos “Panteras Negras” em 1966, partido negro revolucionário com finalidade original de patrulhar guetos negros para proteger os residentes dos atos de brutalidade da polícia, tonificava as tensões políticas iniciadas por Malcom X e Martin Luther King na década anterior, um partidário do nacionalismo negro via proposta de separatismo de um estado negro pelo uso da violência, outro em prol da defesa dos direitos de igualdades civis através da não violência, ao melhor estilo pregado por Mahatma Gandhi décadas atrás.
Muhamad Ali e
Martin Luther King
O pan-africanismo, ideologia de união de todos os povos de África com a unidade política de toda a África e o reagrupamento das diferentes etnias divididas pelas imposições dos colonizadores, ganhava seus grandes ativistas políticos contra o racismo dentro do esporte, como exemplo de Muhammad Ali (considerado o maior pugilista de todos os tempos), que se posicionava politicamente como lutador africano, como no episódio de sua reconquista do título em 1974 contra George Foreman em luta promovida no Zaire, jogando Foreman contra a opinião pública devido a sua falta de engajamento e personificação da alienação negra americana. Ali, que havia assumido posição de mártir pan-africano em 1967 ao se recusar a lutar na Guerra do Vietnã, sendo preso, com a revogação do seu título e proibido de atuar por três anos e meio no boxe. "Nenhum vietcongue me chamou de crioulo, porque eu lutaria contra ele?", declarou Ali à imprensa no episódio, reforçando seu combate político racial dentro e fora dos ringues.

No ano seguinte, culminaria outro protesto simbólico de alcance global expressando a conscientização do movimento social dentro do esporte, desta vez nos jogos Olímpicos de 1968 no México. A ideia de um boicote aos jogos pela comunidade esportiva afro-americana vinha tomando força desde 1965 juntamente com os conflitos raciais intensificados em questão, trazendo em seu ideário a ruptura e radicalização dos atletas negros que rejeitaram a herança de seus ex-campeões pela falta de engajamento e alienação aos movimentos das minorias étnicas, rejeitando a separação entre as esferas esportivas e políticas e rompendo o mito da harmonia social dentro do esporte.

Consolidava-se a formação do Projeto Olímpico para os Direitos Humanos ou OPHR, organização criada pelo sociólogo Harry Edwards entre outros, organização contra a segregação racial norte-americana, sul-africana e no esporte em geral, cujas reivindicações centrais eram: devolução do título a Muhammad Ali, demissão do presidente do comitê olímpico norte-americano e a inclusão de técnicos e dirigentes negros nas equipes e comitê olímpicos.
Tommie Smith e John Carlos
em saudação "Black Power"
aos Panteras Negras
(Jogos Olímpicos do México 1968)

Apesar do movimento ter contado com baixa adesão em seu meio devido a repressão e ameaças do comitê às vésperas da olimpíada, os velocistas Tommie Smith e John Carlos, que durante os jogos de 1968, ao subirem ao pódio após conquistarem ouro e bronze nos 200 metros rasos, ao receberem as medalhas levantaram seus braços esticados com as mãos cobertas por luvas negras e punhos fechados (saudação "black power" do partido revolucionário negro dos Panteras Negras), em protesto pela segregação racial e apoio ao movimento negro em seu país, abaixando a cabeça enquanto o hino nacional tocava no estádio, reforçando sua postura nacionalista afro-americana. Após o ato, transmitido ao vivo pela televisão para o mundo todo, os dois foram expulsos da delegação americana e da vila olímpica e estigmatizados como “anti-patrióticos” pelo aparato da mídia elitista norte-americana. Segundo Alexandre Roos, o ato obteve um caráter de violência simbólica perante a sociedade norte-americana, ideológica e radicalmente nacionalista em sua formação história.

Na década de oitenta, com a abertura econômica mundial capitalista frente ao fim da guerra fria (queda do comunismo) e dos processos de redemocratização latino-americanos (fim das ditaduras militares), ocorreria a transição do esporte a seu formato contemporâneo do esporte comercial e de entretenimento, num sistema de ligas profissionais, através de contratos publicitários entre times (empresas), mega-corporações de produção de consumo e mídias de comunicação massiva.

Michael Jordan surgiria como novo e mítico ícone do “novo esporte” através do basquetebol (até então considerado uma modalidade marginal, desvalorizado e para negros,  recorrendo ao conceito de esporte étnico), numa inovadora fusão oportunista entre instituições do formato supracitado, representadas então por Chicago Bulls, NBA, Nike e ESPN, revolucionando o mercado do esporte onde os atletas ganhariam mais com o marketing do que propriamente com seus salários, vinculando contratualmente “marcas” à imagem  do atleta – esporte comercial corporativo. Jordan, por um lado, propagará ao social através da mídia o perfil ideológico neoliberal-capitalista moderno (competitivo, agressivo, vitorioso, individual e bem sucedido), e por outro, será o primeiro atleta afro-americano a furar a barreira racial publicitária, esboçando a aparente questão da inclusão étnica social contra o racismo.

Michael Jordan:
Empresário Branco
ou Atleta Cidadão Negro?
Futuramente em sua carreira, Jordan, ícone máximo do êxito social negro do esporte, se encontraria envolto em posições polêmicas que remeteriam diretamente a questão central do sentido de “inclusão social”, como o episódio no qual se recusou a se pronunciar na imprensa sobre escândalos de seu mega patrocinador Nike referentes a trabalho semi-escravo em suas fábricas rotativas da Ásia (constatando as práticas hediondas da economia corporativa globalizada). 

Jordan também viria posteriormente a negar seu apoio a um candidato negro representante da luta pelos direitos civis, se omitindo a questão social negra, sob a justificativa de que “os seus oponentes (do candidato negro) também compravam calçados”, conotando forte caráter de alienação da estrela à questão social, numa visão única e exclusivamente empresarial.

Alexandre Ross observaria ainda no contexto contemporâneo da transição ao esporte profissional de contratos publicitários milionários entre equipes, mega corporações de produção de consumo e mídias de entretenimento massivo, a desmitificação de três âmbitos: a) do esporte isento a segregação – ligas esportivas segregadas; b) fim da segregação nas ligas – que foi adotada por motivos financeiros (lucros) pelos proprietários dos clubes; c) harmonia racial dentro de uma equipe de esporte coletivo – postos de liderança midiáticos ocupados por brancos, postos de maior força física e menos intelecto cedidos aos negros, reproduzindo a estrutura ideológica de segregação racial da sociedade dentro do esporte, ao contrário do mito do esporte como integrador.

Voltando às questões iniciais – “Afinal, quem e quais são os inclusos?  De qual e para qual sociedade ou casta da mesma, e por quais interesses e objetivos?”  - observamos que a inclusão do indivíduo na sociedade qual o cerca, depende direta e indiretamente de vários fatores que não somente a prática esportiva coletiva (senso comum atual), como  a exemplos o contexto ideológico, político, econômico e social ao qual o indivíduo se encontra inserido, acesso e garantia a alimentação, educação e direitos civis, formação cultural,  oportunidade de trabalho,  que formarão o “cidadão” junto do “atleta” num mesmo “indivíduo social”, então integrado efetivamente a uma mesma sociedade igualitária onde o próprio se reconheça e estabeleça relações intrínsecas de via dupla com a mesma, consciente de sua condição e do mundo no qual vive e sobrevive, e não somente lançado à ilusões de “ascensão pelo esporte” projetadas marqueteiramente pela propaganda massiva e interessada às ideologias de poder atuante, acobertando as questões centrais da sociedade global capitalista contemporânea.

Recolher garotos negros pobres das ruas imersos no tráfico, ensinar práticas esportivas, afastá-los das drogas e da violência temporariamente com a promessa de um estrelato esportivo num mercado de trabalho restritíssimo profissionalmente, em meio à observação histórica e toda esta reflexão anterior proposta, tendem a me parecer racionalmente como ações paliativas na sociedade capitalista que não atacam as causas, mas somente camuflam suas consequências. Soluções? Miremos a exemplos factíveis de esporte e sociedade. Pergunte a Fidel.

Ricardo Luiz
Novembro de 2011

Bibliografia:

1. ARMSTRONG, G.; GIULIANOTTI, R. (2004) Footbal in Africa : Conflit, Conciliation  and Community.
2. DARBY, P. (2022) Africa Footbal and FIFA: Politics, Colonialism, and Resistance.London: Frank Cass.
3. REMNICK, D. (2000) O rei do mundo: Muhammad Ali e a ascensão de um herói americano. São Paulo: Compania das Letras.
4. HALBESTRAM, D (1999) Michel Jordan: a história de um campeão e o mundo que ele criou. São Paulo: Editora 34
5. ROOS, A. (2006) Les Athletes africains-americains et les mouvements pour l´egalite raciale. Paris: L Harmattan.
6. GALEANO, E. (2002) Futebol ao Sol e à Sombra. São Paulo: Editora LPM.
7. CHAUÍ, M. (1984) O que é ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense

19 de dezembro de 2011

Desafios da Economia Verde

Por Ricardo Abramovay

"Não está afastado o desafio de repensar nossos padrões de consumo, os estilos de vida e o próprio lugar do crescimento econômico nas sociedades"

A eficiência energética do petróleo é, até hoje, inigualável: três colheres contêm o equivalente à energia média de oito horas de trabalho humano. O crescimento demográfico e econômico do século 20 teria sido impossível sem esse escravo barato. No entanto, além de seus efeitos sobre a qualidade do ar nas grandes cidades e dos impactos nas mudanças climáticas globais, seu uso traz um problema adicional.

Cada unidade de energia investida para produzir petróleo nos anos 1940 rendia o equivalente a 110 unidades de energia. Ao longo do século 20, esses retornos foram declinando. A estimativa internacional para exploração em plataformas de alto mar, como o pré-sal, hoje, é de um para dez.

Embora as fontes alternativas de energia estejam se ampliando de maneira espetacular, nada indica que, nos próximos 40 anos, consigam substituir a dependência em que se encontram as maiores economias do mundo de carvão, petróleo e gás. Daí a urgência de acelerar a transição para a economia verde, título de documento lançado em Nairóbi pelo Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente.

O físico e economista norte-americano Robert Ayres, o nome internacional de maior destaque em ecologia industrial, coordenou o capítulo sobre indústria desse documento. O desafio mais importante da economia verde, a seu ver, consiste em reformar a gestão do atual sistema, baseado na economia fóssil, para que se dobre o montante de energia que se extrai de um barril de petróleo (ou do equivalente em termos de carvão ou de gás).

É para enfrentar esse desafio que deve se voltar o essencial do processo de inovação industrial nas sociedades contemporâneas.

Ayres calcula que o sistema econômico desperdiça nada menos que 80% da energia extraída da Terra.

É apenas um indicativo do potencial da reciclagem e da reutilização industriais para atenuar a conhecida escassez de energia e de matérias-primas.

No coração da economia verde está um esforço de desenho industrial, não apenas no interior de cada empresa, mas na própria relação entre empresas: parques tecnológicos devem se converter em parques ecológicos, garantindo a simbiose no uso de materiais e energia entre diferentes indústrias, como já ocorre, por exemplo, na Dinamarca.

Esse é um exemplo dos promissores processos capazes de promover um relativo descasamento entre o crescimento da produção e o uso de materiais e energia em que, até aqui, ela se apoia.

Mas até onde vai esse descasamento? É verdade que cada unidade de produto hoje é obtida com o uso de menos materiais e energia, e até com menos emissões de gases de efeito estufa que há alguns anos.

Em 2002, cada unidade do PIB mundial foi produzida, em média com 26% menos de recursos materiais que em 1980. Caiu a intensidade material da produção de riqueza. No entanto, o crescimento do PIB mundial compensou esse ganho de eficiência: apesar do declínio relativo, o consumo absoluto de materiais aumentou 36%.

E o horizonte 2002/2020 é de que o aumento na produtividade por unidade de produto seja contrabalançado por um consumo quase 50% maior de materiais, com um impacto devastador sobre o clima e sobre os ecossistemas.

Portanto, apesar da importância estratégica de que a economia verde ocupe o centro da inovação, isso não afasta o desafio de repensar os padrões de consumo, os estilos de vida e o próprio lugar do crescimento econômico, como objetivo autônomo, nas sociedades contemporâneas. Inovação e limite são as duas palavras-chave da economia verde.


Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental, pesquisador do CNPq e da Fapesp. Site: www.abramovay.pro.br/

11 de novembro de 2011

Armas Silenciosas Para Guerras Tranquilas


Pelo linguista Noam Chomsky, “10 estratégias de manipulação” através da comunicação social.

1- A ESTRATÉGIA DA DISTRACÇÃO.

O elemento primordial do controle social é a estratégia da distracção que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e económicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distracções e de informações insignificantes. A estratégia da distracção é igualmente indispensável para impedir o povo de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área das ciências, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à quinta como os outros animais (citação do texto ‘Armas silenciosas para guerras tranquilas’)”.

2- CRIAR PROBLEMAS, DEPOIS OFERECER SOLUÇÕES.

Este método também é chamado “problema-reacção-solução”. Cria-se um problema, uma “situação” prevista para causar certa reacção no público, a fim de que este tenha a percepção que participou nas medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público exija novas leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou ainda: criar uma crise económica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3- A ESTRATÉGIA DA GRADAÇÃO.

Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradualmente, a conta-gotas, durante anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconómicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários baixíssimos, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.

4- A ESTRATÉGIA DO DEFERIDO.

Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como sendo “dolorosa e necessária”, obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é aplicado imediatamente. Segundo, porque o público – a massa – tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que “tudo irá melhorar amanhã” e que o sacrifício exigido poderá vir a ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para acostumar-se à ideia da mudança e de aceitá-la com resignação quando chegar o momento.

5- DIRIGIR-SE AO PÚBLICO COMO SE DE CRIANÇAS SE TRATASSEM.

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entoação particularmente infantis, muitas vezes próximos da debilidade mental, como se cada espectador fosse uma criança de idade reduzida ou um deficiente mental. Quanto mais se pretende enganar ao espectador, mais se tende a adoptar um tom infantilizante. Porquê? “Se você se dirigir a uma pessoa como se ela tivesse 12 anos ou menos, então, em razão da sugestionabilidade, ela tenderá, com certa probabilidade, a dar uma resposta ou reacção também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver “Armas silenciosas para guerras tranquilas”)”.

6- UTILIZAR MUITO MAIS O ASPECTO EMOCIONAL DO QUE A REFLEXÃO.

Fazer uso do discurso emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e pôr fim ao sentido critico dos indivíduos. Além do mais, a utilização do registo emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para incutir ideias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos…

7- MANTER O PÚBLICO NA IGNORÂNCIA E NA MEDIOCRIDADE.

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para o seu controle e escravidão. “A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores e as classes sociais superiores seja e permaneça impossível de eliminar (ver ‘Armas silenciosas para guerras tranquilas’)”.

8- ESTIMULAR O PÚBLICO A SER COMPLACENTE NA MEDIOCRIDADE.

Promover no público a ideia de que é moda o facto de se ser estúpido, vulgar e inculto…

9- REFORÇAR A REVOLTA PELA AUTOCULPABILIDADE.

Fazer o indivíduo acreditar que é somente ele o culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência da sua inteligência, de suas capacidades, ou do seu esforço. Assim, ao invés de revoltar-se contra o sistema económico, o indivíduo autocritica-se e culpabiliza-se, o que gera um estado depressivo, do qual um dos seus efeitosmais comuns, é a inibição da acção. E, sem acção, não há revolução!

10- CONHECER MELHOR OS INDIVÍDUOS DO QUE ELES MESMOS SE CONHECEM.

No decorrer dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência têm gerado um crescente afastamento entre os conhecimentos do público e os possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o “sistema” tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele mesmo conhece a si mesmo. Isto significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos do que os indivíduos sobre si próprios.


... do blog   http://oscafeinicos.wordpress.com/

29 de outubro de 2011

Fragmento #111026


El paradojo social:
Los que están lúcidos son considerados locos,
Los que están locos son considerados lúcidos.
  
(RL)
  
...desde Lima, Perú.

8 de outubro de 2011

Eduardo Galeano


 
Programa Sangue Latino, do Canal Brasil, gravado em 2009.
Entrevista com o jornalista e escritor uruguaio, Eduardo Galeano.
Entrevistas de Eric Nepomunceno.
Direção de Felipe Nepumuceno.

7 de outubro de 2011

O Homem Medícore

 
 
O Clima da Mediocridade

Por José Ingenieros

Em raros momentos, a paixão caldeia a história, e se exaltam os idealismos; quando as nações se constituem, e quando elas se renovam. Antes, é secreta ânsia de liberdade, luta pela independência; mais tarde, crise de consolidação institucional a seguir e, depois, veemência de expansão, ou pujança de energias. Os gênios pronunciam palavras definitivas; os estadistas plasmam os seus planos visionários; os heróis põem o seu coração na balança do destino.

É, porém, fatal que os povos tenham longas inter-cadências de cevadura. A história não conhece um único caso em que altos ideais trabalhem com ritmo contínuo, para a evolução de uma raça. Há horas de palingenesia (regeneração), e as há também de apatia, como há vigílias e sonhos, dias e noites, primaveras e outonos, em cujo altenar-se infinito está dividida a continuidade do tempo.

Em certos períodos, a nação adormece dentro do pais. O organismo vegeta; o espírito se amodorra. Os apetites acossam os ideais, tornando-os dominadores e agressivos. Não há astros no horizonte, nem auriflamas nos campanários. Não se percebe clamor algum do povo; não ressoa o éco de grandes vozes animadoras. Todos os apinham em torno dos mantos oficiais, para conseguir, alguma migalha da merenda. É o clima da mediocridade.

Os Estados tornam-se mediocracias que os filósofos inexpressivos prefeririam denominar "mesocracias".

O culto da verdade entra na penumbra, bem como o afã de admiração, a fé em crenças firmes, a exaltação de ideais, o desinteresse, a abnegação — tudo o que está no caminho da virtude e da dignidade.

Platão, sem querer, dizendo da democracia: "é o pior dos bons governos, mas é o melhor entre os maus", definiu a mediocracia. Transcorram séculos; a sentença conserva a sua verdade.

Na primeira década do século XX, acentuou-se a decadência moral das classes governantes. Em cada comarca, uma facção de parasitas detém as engrenagens do mecanismo oficial, excluindo do seu seio todos quantos recusam altivamente a própria cumplicidade em seus empreendimentos. Aqui são castas adventícias, ali sindicatos industriais, acolá facções de palavreiros. São gavelas (bandos, quadrilhas), e se intitulam partidos. Intentam disfarçar com os ideais o seu monopólio do Estado. São bandoleiros que procuram a encruzilhada mais impune, para espoliar a sociedade.

Em todos os tempos e sob todos os regimes, houve políticos sem vergonha; mas estes nunca encontram melhor clima, do que nas burguesias ideais. Onde todos podem falar, os ilustrados se calam; os enriquecidos preferem ouvir os mais vis imbuidores.

Quando o ignorante se julga igualado ao estudioso, o velhaco ao apóstolo, o falador ao eloqüente e o mau ao digno, a escala do mérito desaparece numa vergonhosa nivelação de vilania. A mediocridade é isso: os que nada sabem, julgam dizer o que pensam, embora cada um só consiga repetir dogmas, ou auspiciar voracidades.

Essa chatice moral é mais grave do que a aclimação a uma tirania; ninguém pode voar onde todos rastejam. Convenciona-se denominar urbanidade à hipocrisia, distinção à efeminação, cultura à timidez, tolerância à cumplicidade; a mentira proporciona estas denominações equívocas. E os que assim mentem, são inimigos de si próprios e da pátria, deshonrando, nela, seus pais e seus filhos, e carcomendo a dignidade comum.

Sempre há medíocres; estes são perenes. O que varia, é o seu prestígio e a sua influência. Nas épocas de "exaltação renovadora", eles se mostram humildes, são tolerados; ninguém os nota, não ousam meter-se em coisa alguma. Quando se enfraquecem os ideais, e se substitue o qualitativo pelo quantitativo, começa-se a contar com eles. Apercebem então, o seu número, reúnem-se em grupos, arrebanham-se em partidos. A sua infiuéncia cresce, à medida que o clima se tempera; e o sábio é igualado ao analfabeto, o rebelde ao lacaio, o poeta ao presumista. A mediocridade se condensa, converte-se em sistema, torna-se incontrastável.

À mingua ciestes é disfarçada com um excesso de pompas e as palavras; cala-se qualquer protesto, oferecendo participação nos festins; prociamam-se as melhores intenções, e se praticam baixezas abomináveis; mente a arte; mente a justiça; mente o caráter. Tudo mente, com a aquiescência de todos; cada homem põe preço à sua cumplicidade — um preço razoável, que oscila entre um emprego e uma condenação.

A tirania do clima é absoluta: nivelar-se ou sucumbir. A regra conhece poucas exceções na história. As mediocracias negaram sempre as virtudes, as belezas, as grandezas; deram veneno a Sócrates; o madeiro a Cristo; o punhal a Cesar; o destêrro a Dante; o cárcere a Galileo; o fogo a Bruno; e, enquanto escarneciam desses homens exemplares, esmagando-os com a sua sanha ou armando contra eles algum braço enlouquecido, ofereciam o seu servilismo a governantes imbecis ou davam o seu ombro para sustentar as mais torpes tiranias. A um preço: que estas garantissem, às classes fartas, a tranqüilidade necessária para usufruir seus privilégios.

As mediocracias são escoradas pelos apetites dos que esperam nelas viver, e no medo dos que temem perder a pitança (ração diária).

A indignidade civil é lei, nesses climas. Todo homem declina de sua personalidade, ao converter-se em funcionário: a cadeia não é visível no seu pé, como nos dos escravos, mas ele a arrasta, ocultamente, amarrada ao seu intestino.

José Ingenieros

trechos de sua obra: "O Homem Medíocre"

11 de setembro de 2011

Fragmento #11911


Desligue a TV. Você sabe que a mentira repetida e repetida e repetida torna-se “verdade” no inconsciente coletivo, inevitavelmente. Assim fizeram-se e perpetuaram-se as religiões, as doutrinas políticas, econômicas, filosóficas, acadêmicas, ideológicas e todos os dogmas de poder deflagrados secularmente sobre nós, homens escravizados mentalmente. Hoje, enquanto eles dizem rememorar com pesar as vítimas do terror contra-imperial e celebrar sua secular luta em prol de sua exclusiva e opressora liberdade, nós desligaremos o transmissor sensacional-hipnótico e planaremos sobre realidade da natureza dos fatos, num esforço individual e espiritual de dignidade existencial humana. 
Homens livres atuaram e assim continuarão, inquirindo a história oficial publicada e transmitida constantemente por sua propaganda ditatorial. Se vão dez anos de uma mesma lorota “oficial” sobre o 11 de Setembro nova-iorquino, e se vão também iguais dez anos de evidências investigadas, testemunhos colhidos, contra-fatos averiguados e morticínio militar-latrocida observados por homens livres que reconheceram sua condição de cobaias manipuladas por uma ditadura de apenas dois partidos, que veladamente ao olho comum, são um mesmo e único centro de poder absoluto imperial.
Enquanto Bush e Obama caminham de mãos dadas na encenação do cerimonial de dez anos do 11/09, nós, homens livres, rememoraremos essa mesma máscara secular utilizada pelos Imperadores Romanos, por Alexandre da Macedônia, pela Igreja, seus papados, sua cruzadas  e sua santa inquisição. Reconheceremos sua mesma faceta e semblante nos Habsburgos, nos Bourbons  e na dinástica coroa do Grão Império Britânico. Sentiremos o mesmo odor cadavérico-carbonizado-genocida deixado na atmosfera terrestre pelos Czares, por Napoleão e por Hitler, disfarçados de contemporânea fragrância barata neoliberal-capitalista pelos Rothschild, pelos Roquefeler, pelo grupo Bilderberg  e atuais máfias dominantes. Ouviremos ainda, muito clara e presentemente, os gritos ressonantes dos torturados e assassinados pelas ditaduras militares do século XX na América Latina, empossadas através de golpes promovidos pela CIA na fase de espoliação mundial pós-2ª Guerra pelo capitalismo, enquanto do outro lado do planeta, o outro “ismo” de uma série deles, promovia o mesmo tipo de terror e estupro na implantação de seu sistema “comum”.
E finalmente tocaremos com a ponta dos dedos e presencialmente os efeitos destas limitações impostas pela impostura senhorial cotidiana, a exemplo da lei de livre mercado, da neo-escravidão periférica global, da corrupção governamental mundial, do corporativismo social alienante, assim como a mais recente revogação dos direitos civis, outorgada através do “Ato Patriótico” no episódio imediato pós 11/09. Sentiremos também cada gota deste veneno nos adormecer a língua e o senso crítico ante a exaustão cotidiana à qual estamos condicionados e aprisionados num sistema cada vez mais amarrado pelos anfitriões do infindo e histórico baile de máscaras da construção da mentira humana do poder.
E assim, enquanto a atual propaganda ideológica barata nos ofende ao tentar se infiltrar em nossas mentes, observaremos, de um lado e imersos entre teses oficiais ou teórico-conspiratórias, a aviões seqüestrados por árabes se chocando contra torres do controle da economia virtual em efeito contra-terrorista aplicados às suas nações detentoras de petróleo, ou a torres implodidas pelo próprio governo estadunidense vindo abaixo numa exatidão vertical invejável a mais refinada engenharia de demolições controladas, em prol da criação do estereótipo do terror do inimigo externo que renovará e reforçará o endosso popular alienado às próximas sanções de um plano onde nós, homens livres, enxergaremos claramente seu contexto, sua trama e sua construção e execução, e observando as etapas subseqüentes deste mesmo plano neofacista que serviria de mote da “guerra contra o terror”, frente a ativação do campo de concentração de Guantánamo, à revogação dos direitos civis estadunidenses , às invasões norte americanas e européias do Iraque e Afeganistão , os avanços progressivos das tropas da OTAN sobre o Oriente Médio e África subsaariana que implodiriam em novas rebeliões desestabilizadoras implantadas no mundo árabe, ridiculamente incapazes de deter a queda da falida economia virtual  e militar do grão império decadente. 
E neste momento, no qual nos desconectamos da “matriz” neural-televisiva-ideológica, nós, homens livres, faremos sim uma prece silenciosa, mas a nenhum deus dogmático, nem aos três mil mortos na queda das torres, nem aos milhares de soldados mortos nas guerras de latrocínio anteriores e posteriores, nem aos milhões das populações soberanas oprimidas e as centenas de milhares de civis iraquianos e paquistaneses assassinados      parcial e sumariamente pelos EUA e OTAN, ou aos milhões de civis desterrados seus lares e de suas vidas devido a desestabilização promovida pelo terror imperial, ou até mesmo os bilhões de seres humanos idos das mais várias etnias e culturas massacrados através dos séculos por todas as tradicionais instituições do poder e opressão dogmáticas às quais temos consentidamente nos submetido.
Hoje, neste 11 de Setembro de 2011, nós, homens livres, faremos uma mentalização sobre nossa condição de animais filhos da Terra, aprisionados por nossos próprios dogmas que tem consumido a nós mesmos e ao nosso paradisíaco e unicamente conhecido Lar (num raio de N anos luz) por via de nossa escravidão mental, que nos impele a uma espécie de racionalidade brutal e hedionda, que nos divide, nos limita, nos encarcera, nos separa e nos mutila, nos amarrando a modelos tradicionailistas e recorrentes, sofísticos e pré-definidos e conceitos razos e paradoxais, em contramão à nossa única conceituação essencial à qual deveríamos buscar como objetivo primordial e final de nossa existência, através de um algum tipo de fé cética, idólatra somente à dúvida e à manutenção das certezas estabelecidas, que nos conduza à sabedoria, que não mais que uma práxis coletiva global que nos leve a um simples e natural bem viver em união e equilíbrio entre nós mesmos e consequentemente com nossa mãe Terra, da qual nos apartamos através dos séculos pelas ações e efeitos seculares das instituições criadas sobre e para o domínio aprisionador da humanidade, nos libertando de toda e qualquer idéia que se apresente de forma imposta, incontestável, indiscutível e imutável.
“Liberdade?” , você me pergunta. A mim, me parece um estado, e não um mero conceito, como bem  materializado em lindas palavras escapulidas de um sopro de pensamento de uma livre poetisa brasileira chamada Cecília Meireles, as quais deixo agora e aqui com você:

"Livre é o estado daquele que tem liberdade.
Liberdade é uma palavra
Que o sonho humano alimenta.
Que não há ninguém que explique
E não há ninguém que não entenda.”

(RL)
 
11/09/2011

Zero & Um

Por Vladimir Safatle
 
 
Há tempos, as pesquisas em inteligência artificial procuram criar um computador que tenha a complexidade de um cérebro humano.
 
Bem, certos setores do debate nacional de ideias conseguiram o inverso: criar cérebros que parecem mimetizar as restrições de um computador. Pois eles são como hardwares que suportam apenas um pensamento binário, onde tudo é organizado a partir de "zero" e "um".
 
De fato, o Brasil tem de conviver atualmente com debates onde o mundo parece se dividir em dois. Não há nuances, inversões ou possibilidades de autocrítica.
 
Jean-Paul Sartre costumava dizer que o verdadeiro pensamento pensa contra si mesmo.
 
Este é, por sinal, um bom ponto de partida para se orientar em discussões: nunca levar a sério alguém incapaz de pensar contra si mesmo, incapaz de problematizar suas próprias certezas devido à redução dos argumentos opostos a reles caricatura.
 
Afinal, se estamos no reino do pensamento binário, então só posso estar absolutamente certo e o outro, ridiculamente errado. Daí porque a única coisa a fazer é apresentar o outro sob os traços do sarcasmo e da redução irônica. Mostrar que, por trás de seus pretensos argumentos, há apenas desvio moral e sede de poder.
 
Isso quando a desqualificação não passa pela simples tentativa de infantilizá-lo. Alguns chamam isso de "debate". Eu não chegaria a tanto.
 
Infelizmente, tal pensamento binário tem cadeira cativa nas discussões políticas.
 
Se você critica as brutais desigualdades das sociedades capitalistas, insiste no esvaziamento da vida democrática sob os mantos da democracia parlamentar, então está sorrateiramente à procura de reconstruir a União Soviética ou de exportar o modelo da Coreia do Norte para o mundo.
 
Se você critica os descaminhos da Revolução Cubana ou a incapacidade da esquerda em aumentar a densidade da participação popular nas decisões governamentais, criando, em seu lugar, uma nova burocracia de extração sindical, então você ingenuamente alimenta o flanco da direita.
 
Esse binarismo só pode se sustentar por meio da crença de que nenhum acontecimento ocorrerá. Tudo o que virá no futuro é a simples repetição do passado. Não há contingência que possa me ensinar algo. Só há acontecimento quando este reforça minhas certezas.
 
O resto é "fogo-fátuo" e conspiração. É possível encontrar modelos desse raciocínio à esquerda e à direita. No entanto não precisamos de nenhum deles.
 
Precisamos de um pensamento com a coragem de admitir acontecimentos que nos desorientam. Pois - e este é um dos elementos mais impressionantes da vida - quando fechamos os olhos para tais acontecimentos, eles, de fato, desaparecem.
 
 
Artigo do professor Vladimir Safatle, do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Publicado em 06/09/2011 na Folha de São Paulo.

21 de agosto de 2011

No Caminho, com Maiakóvski

Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. Nos dias que correm a ninguém é dado repousar a cabeça alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz; e nós, que não temos pacto algum com os senhores do mundo, por temor nos calamos. No silêncio de meu quarto a ousadia me afogueia as faces e eu fantasio um levante; mas amanhã, diante do juiz, talvez meus lábios calem a verdade como um foco de germes capaz de me destruir. Olho ao redor e o que vejo e acabo por repetir são mentiras. Mal sabe a criança dizer “mãe” e a propaganda lhe destrói a consciência. A mim, quase me arrastam pela gola do paletó à porta do templo e me pedem que aguarde até que a Democracia se digne a aparecer no balcão. Mas eu sei, porque não estou amedrontado a ponto de cegar, que ela tem uma espada a lhe espetar as costelas e o riso que nos mostra é uma tênue cortina lançada sobre os arsenais. Vamos ao campo e não os vemos ao nosso lado, no plantio. Mas ao tempo da colheita lá estão e acabam por nos roubar até o último grão de trigo. Dizem-nos que de nós emana o poder mas sempre o temos contra nós. Dizem-nos que é preciso defender nossos lares mas se nos rebelamos contra a opressão é sobre nós que marcham os soldados. E por temor eu me calo, por temor aceito a condição de falso democrata e rotulo meus gestos com a palavra liberdade, procurando, num sorriso, esconder minha dor diante de meus superiores. Mas dentro de mim, com a potência de um milhão de vozes, o coração grita - MENTIRA!

(Eduardo Alves da Costa)

8 de agosto de 2011

A Desmemória

#1

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração.

Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade.

Um sistema de desvínculos: para que os calados não se façam perguntões, para que os opinados não se transformem em opinadores. Para que não se juntem os solitários, nem a alma junte seus pedaços.

O sistema divorcia a emoção do pensamento como divorcia o sexo do amor, a vida íntima da vida pública, o passado do presente. Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, nos guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces.

O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias.

Como trágica ladainha a memória boba se repete. A memória viva, porém, nasce a cada dia, porque ela vem do que foi e é contra o que foi. Auíheben era o verbo que Hegel preferia, entre todos os verbos do idioma alemão. Auíheben significa, ao mesmo tempo, conservar e anular; e assim presta homenagem à história humana, que morrendo nasce e rompendo cria.

#2

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (...)

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada.

Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. (...)

A ressurreição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua solução na realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez.

 A revolução social (...) não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século (...) deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes a frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase.


#1 GALEANO, Eduardo. O Livro dos Abraços. 1991.

#2 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. 1852.

7 de agosto de 2011

Chantagem Universal


Interpretação: Antônio Abujamra  -  Autor: José Ortega y Gasset

Pálido Ponto Azul

Por Carl Sagan

A nave espacial estava muito distante de casa, além da órbita do planeta mais afastado e bem acima do plano da eclíptica - que é uma superfície plana imaginária que podemos visualizar como uma pista de corrida onde as órbitas dos planetas ficam principalmente confinadas. A nave afastava-se aceleradamente do Sol a 60 mil quilômetros por hora. Mas, no início de fevereiro de 1990, foi alcançada por uma mensagem urgente da Terra.

Obedientemente, redirecionou suas câmeras para os já distantes planetas. Girando sua plataforma de varredura de um ponto a outro no espaço, tirou sessenta fotografias e as armazenou sob forma digital em seu gravador. Depois, lentamente, em março, abril e maio, radiotransmitiu os dados pra a Terra. Cada imagem era composta de 640 mil elementos individuais (“pixels"), como os pontos em uma fotografia de jornal transmitida por telégrafo ou em uma pintura pontilhista. A nave espacial estava a 6 bilhões de quilômetros da Terra, tão distante que cada pixel levava cinco horas e meia, viajando à velocidade da luz, para chegar até nós. As fotos poderiam ter sido enviadas mais cedo, mas os grandes radiotelescópios na Califórnia, na Espanha e na Austrália, que recebem esses sussurros da orla do Sistema Solar, tinham responsabilidades para com outras naves que transitam pelo mar espacial - entre elas, Magellan, rumo a Vênus, e Galileo, em sua travessia tortuosa por Júpiter.

A Voyager 1 estava tão acima do plano da eclíptica porque, em 1981, passara muito perto de Titã, a lua gigantesca de Saturno. Sua nave irmã, a Voyager 2, fora enviada numa trajetória diferente dentro do plano da eclíptica e, por isso, pudera realizar as célebres explorações de Urano e Netuno. Os dois robôs Voyager exploraram quatro planetas e quase sessenta luas. São triunfos da engenharia humana e uma das glórias do programa espacial norte-americano. Ainda estarão nos livros de história, quando muitos outros dados sobre nossa época já tiveram caído no esquecimento.

O funcionamento das Voyager só estava garantido até o encontro com Saturno. Achei que seria uma boa idéia, logo depois de Saturno, que elas lançassem um último olha para casa. Eu sabia que, vista a partir de Saturno, a Terra pareceria demasiado pequena para que a Voyager distinguisse algum detalhe. O nosso planeta seria apenas um ponto de luz, um pixel solitário, mal distinguível dos muitos outros pontos de luz que a Voyager podia divisar, planetas próximos e sóis distantes. Mas, justamente por causa da obscuridade de nosso mundo assim revelado, valeria a pena ter a fotografia.

Os marinheiros fizeram um levantamento meticuloso das costas litorâneas dos continentes.

Os geógrafos traduziram essas descobertas em mapas e globos. Fotografias de pequenos fragmentos da Terra foram tiradas, primeiro por balões e aviões, depois por foguetes em vôos balísticos curtos e, finalmente, por naves espaciais em órbita - gerando uma perspectiva similar à que obtemos quando posicionamos o globo ocular uns três centímetros acima de uma grande esfera. Embora quase todo mundo aprenda que a Terra é um globo ao qual estamos, de certa forma, presos pela gravidade, a realidade de nossa circunstância só começou, de fato, a penetrar em nosso entendimento com a famosa fotografia Apollo 17 na última viagem de seres humanos à Lua.

Ela se tornou uma espécie de ícone da nossa era. Ali está a Antártida, que norteamericanos e europeus consideram a parte extrema da Terra, e toda a África estirando-se acima dela: vemos a Etiópia, a Tanzânia e o Quênia, onde viveram os primeiros seres humanos. No alto, à direita, estão a Arábia Saudita e o que os europeus chamam Oriente Médio. Mal e mal espiando no topo, está o mar Mediterrâneo, ao redor do qual surgiu uma parte tão grande de nossa civilização global. Podemos distinguir o azul do oceano, o amarelo-ocre do Saara e do deserto árabe, o castanho-esverdeado da floresta e dos prados.

Não há, entretanto, sinal de seres humanos na fotografia, nem de nosso reelaboração da superfície da Terra, nem de nossas máquinas, nem de nós mesmos: somos demasiado pequenos e nossa política é demasiado fraca para sermos vistos por uma nave espacial entre a Terra e a Lua. Desse ponto de observação, nossa obsessão com o nacionalismo não aparece em lugar algum. As fotografias Apollo da Terra inteira transmitiram às multidões algo bem conhecidos dos astrônomos: na escala de mundos - para não falar da escala de estrelas ou galáxias - os seres humanos são insignificantes, uma película fina de vida sobre um bloco obscuro e solitário de rocha e metal.

Parecia-me que outra fotografia da Terra, tirada de um ponto de centenas de milhares de vezes mais distantes, poderia ajudar no processo continuo de revelar-nos nossa verdadeira circunstância e condição. Os cientistas e filósofos da Antigüidade clássica tinham compreendido muito bem que a Terra era um simples ponto num vasto cosmo circundante, mas ninguém jamais a vira nessa condição. Era a nossa primeira oportunidade (e também a última em várias décadas).

Muitos membros do Projeto Voyage da NASA deram o seu apoio. Vista a partir da orla do

Sistema Solar, porém, a Terra fica muito perto do Sol, como uma mariposa enfeitiçada ao voar ao redor de uma chama. Apontaríamos a câmera para tão perto do Sol, a ponto de correr o risco de queimar o sistema vidicon da nave espacial? Não seria melhor esperar ate que fossem obtidas todas as imagens cientificas de Urano e Netuno, se a nave espacial chegasse a durar tanto tempo?

E assim, esperamos - o que foi bom - de 1981, em Saturno, a 1986, em Urano, e a 1989, quando as duas naves espaciais já tinham passado das órbitas de Netuno e Plutão. Por fim, chegou a hora. Havia, porém, algumas calibrações instrumentais a serem feitas primeiro, e esperamos um pouco mais. Embora a nave espacial estivesse nos lugares certos, os instrumentos ainda funcionassem maravilhosamente, e não houvesse outras fotografias a serem tiradas, alguns membros do projeto se opuseram. Não era ciência, diziam. Descobrimos, então, que, numa NASA em dificuldades financeiras, os técnicos que projetavam e transmitiam os comandos de rádio para a Voyager estavam para ser dispensados imediatamente ou transferidos para outras tarefas. Se quiséssemos tirar a fotografia, tinha de ser naquele momento. No último minuto - na verdade, no meio do encontro da Voyager 2 com Netuno - o então administrador da NASA, contra-almirante

Richard Truly, interveio e garantiu que as imagens fossem obtidas. Os cientistas espaciais Candy Hansen, do Laboratório de Propulsão a Jato da NASA (JPL), e Carolyn Porco, da Universidade do Arizona, projetaram a seqüência de comandos e calcularam os tempos de exposição da câmera.

Assim, aqui estão elas - um mosaico de quadrados dispostos sobre os planetas e uma coleção heterogênea de estrelas mais distantes ao fundo. Não só conseguimos fotografar a Terra, mas também outros cinco dos nove planetas conhecidos que giram em torno do Sol. No brilho deste, perdeu-se Mercúrio, o mais próximo. Marte e Plutão eram demasiado distantes. Urano e Netuno são tão indistintos que, para registrar a sua presença, foram necessárias longas exposições; conseqüentemente, devido ao movimento da nave espacial, suas imagens não ficaram nítidas. Essa seria a imagem eu os planetas ofereceriam a uma espaçonave alienígena que se aproximasse do Sistema Solar depois de uma longa viagem interestelar.

A partir dessa distância, os planetas parecem apenas pontos de luz, nítidos ou não - mesmo através do telescópio de alta resolução a bordo da Voyager. São como os planetas vistos a olho nu da superfície da Terra; pontos luminosos, mais brilhantes que a maioria das estrelas. Durante um período de meses, a Terra, como os outros planetas, pareceria mover-se entre as estrelas. Olhando simplesmente para um desses pontos, não se pode dizer como ele é, o que existe na sua superfície, qual foi seu passado e se, neste momento em particular, alguém vive ali.

Devido ao reflexo da luz do Sol na nave espacial, a Terra parece estar pousada num raio de luz, como se nosso pequeno mundo tivesse um significado especial. Mas é apenas um acidente de geometria e óptica. O Sol emite sua radiação eqüitativamente em todas as direções. Se a foto tivesse sido tirada um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, nenhum raio de sol teria dado mais luz à Terra.

E por que essa cor cerúlea? O azul provém em parte do mar, em parte do céu. Embora transparente, a água em copo absorve um pouco mais de luz vermelha que de azul. Quando se tem dezenas de metros da substância ou mais, a luz vermelha é totalmente absorvida e o que se reflete no espaço é sobretudo o azul. Da mesma forma, o ar parece perfeitamente transparente num pequeno campo de visão. Ainda assim - algo que Leonardo da Vinci era mestre em pintar - quando mais distante o objeto, mas azul ele parece ser. Por quê? O ar dispersa muito melhora a luz azul do que a vermelha. O matiz azulado, portando, provém da atmosfera espessa, mas transparente, da Terra e de seus oceanos profundos e líquidos. E o branco? Em um dia normal, a Terra tem quase metade de sua superfície coberta por nuvens brancas de água.

Nós podemos explicar o azul-pálido desse pequeno mundo porque conhecemos muito bem. Se um cientista extraterrestre, recém chegado às imediações do nosso Sistema Solar, poderia fidedignamente inferir oceanos, nuvens e uma atmosfera espessa, já não é tão certo. Netuno, por exemplo, é azul, mas por razões inteiramente diferentes. Desse ponto de observação, a Terra talvez não apresentasse nenhum interesse especial.

Para nós, no entanto, ela é diferente. Olhem de novo para o ponto. É ali. É a nossa casa.

Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “lideres supremos”, todos os santos e pecadores da historia da nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração desse ponto. Pesem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes de um canto desse pixel contra os habitantes mal distinguíveis de algum outro canto, em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.

Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, tudo é posto em dúvida por esse ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, em meio a toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.

A Terra é, até agora, o único mundo conhecido que abriga a vida. Não há nenhum outro lugar, ao menos no futuro próximo, para onde nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Goste-se ou não, no momento a Terra é o nosso posto.

Tem-se dito que a astronomia é uma experiência que forma o caráter e ensina humildade.

Talvez não exista melhor comprovação da loucura das vaidades humanas do que esta distante imagem de nosso mundo minúsculo. Para min, ela sublinha a responsabilidade de nos relacionarmos mais bondosamente uns com os outros e de preservarmos e amarmos o pálido ponto azul, o único lar que conhecemos.


SAGAN, Carl. Pálido ponto azul. São Paulo : Companhia das Letras, 1996. Cap.1 - "Você Está Aqui"

10 de julho de 2011

Europa: 500 anos depois

Um discurso feito pelo embaixador Guaicaípuro Cuatemoc, de descendência indígena, defendendo o pagamento da dívida externa do seu país, o México, embasbacou os principais chefes de Estado da Comunidade Européia. A conferência dos chefes de Estado da União Européia, Mercosul e Caribe, em maio de 2002 em Madri, viveu um momento revelador e surpreendente: os chefes de Estado europeus ouviram perplexos e calados um discurso irônico, cáustico e de exatidão histórica que lhes fez Guaicaípuro Cuatemoc.

Por Guaicaípuro Cuatemoc

"Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos, Para encontrar os que a "descobriram" só há 500 anos. O irmão europeu da aduana me pediu um papel escrito, um visto, para poder descobrir os que me descobriram. O irmão financista europeu me pede o pagamento - ao meu país- , com juros, de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei que me vendesse. Outro irmão europeu me explica que toda dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. Eu também posso reclamar pagamento e juros.

Consta no "Arquivo da Cia. das Índias Ocidentais" que, somente entre os anos 1503 e 1660, chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América.

Teria sido isso um saque? Não acredito, porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao sétimo mandamento! Teria sido espoliação? Guarda-me Tanatzin de me convencer que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão.

Teria sido genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas ou Arturo Uslar Pietri, que afirmam que a arrancada do capitalismo e a atual civilização européia se devem à inundação de metais preciosos tirados das Américas.

Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de tantos empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas indenização por perdas e danos.

Prefiro pensar na hipótese menos ofensiva.

Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano "MARSHALL MONTEZUMA", para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, e de outras conquistas da civilização.

Para celebrar o quinto centenário desse empréstimo, podemos perguntar: Os irmãos europeus fizeram uso racional responsável ou pelo menos produtivo desses fundos?

Não. No aspecto estratégico, dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em navios invencíveis, em terceiros reichs e várias formas de extermínio mútuo. No aspecto financeiro, foram incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de amortizar o capital e seus juros quanto independerem das rendas líquidas, das matérias-primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo.

Este quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente, temos demorado todos estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus, as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e até 30% de juros ao ano que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo.

Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos, acrescida de um módico juro de 10%, acumulado apenas durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça. Sobre esta base e aplicando a fórmula européia de juros compostos, informamos aos descobridores que eles nos devem 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambas as cifras elevadas à potência de 300, isso quer dizer um número para cuja expressão total será necessário expandir o planeta Terra.

Muito peso em ouro e prata... quanto pesariam se calculados em sangue?

Admitir que a Europa, em meio milênio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para esses módicos juros, seria como admitir seu absoluto fracasso financeiro e a demência e irracionalidade dos conceitos capitalistas.

Tais questões metafísicas, desde já, não inquietam a nós, índios da América. Porém, exigimos assinatura de uma carta de intenções que enquadre os povos devedores do Velho Continente e que os obriguem a cumpri-la, sob pena de uma privatização ou conversão da Europa, de forma que lhes permitam entregar suas terras, como primeira prestação de dívida histórica..."


* publicado no Jornal do Comércio - Recife/PE - 21/05/2002