23 de setembro de 2012

Século XX


História, Testemunho e Interpretação no Pós-Guerra



 
“Não fale do medo que temos da vida.
Não ponha o dedo na nossa ferida.”
- Ivan Lins, “Cartomante”
 

No ano de 2001, quando estive em Munique, na Alemanha, aproveitei a oportunidade para visitar as ruínas e o museu de memória semita que hoje compõe o ex campo de concentração nazista de Dachau 1. Na ocasião, após me informar com a população local sobre o paradeiro e o itinerário que me levaria ao memorial do campo de extermínio, enquanto esperava num ponto de ônibus, puxei conversa com um senhor alemão aparentemente sexagenário, que também aguardava o transporte sentado ao meu lado. Trocamos um diálogo sobre banalidades triviais – de onde éramos, o que fazíamos, sobre pontos comuns entre Alemanha e Brasil - até que ao sentir que a conversa amolecera, perguntei sobre suas memórias a respeito da 2ª. guerra mundial.   “Não falamos sobre isso”, ele respondeu, encerrando a conversa educadamente.
Em pleno século XXI e há mais de seis décadas após o horror, apesar dos avanços na quebra do silêncio através de produções documentais, literárias e cinematográficas iniciadas paulatinamente no período pós-guerra e acentuada sobre tudo após a Guerra Fria2, o trauma e o tabu ainda se apresentam pungentes entre carrascos e vítimas, atores e testemunhas, sub-homens de um conflito inconcluso – a mudez ante o terror genocida produzido pelas utopias do totalitarismo na 2ª guerra.

2     CANCELLI, Elizabeth. Testemunho e obliteração: da tragédia ao melodrama. Pag. 5 

A construção da memória por via testemunhal atravessaria paralelamente a reconstrução não somente física, mas psicológica e ideológica da Europa sobrevivente, dentro da famosa tônica do “tempo ao tempo”, em vista da reordenação caótica iniciada no pós-guerra em 1945, em meio às lentas e torturantes repatriações em massa de dezenas de milhões de europeus 3 4,  conflitos remanescentes subsequentes e ajustes de contas violentos (punições civis) entre vencedores e derrotados, numa dinâmica de acentuação da produção testemunhal proporcional a um distanciamento à década de 1940.
O esquecimento e o silêncio, tomados como espécie de morfinas iniciais do pós-guerra, dariam então lugar a dilacerante dor crônica espiritual das testemunhas do horror a partir da 1ª década do pós-guerra, através da produção da literatura de testemunho, a exemplo das obras de Marta Hiller e Primo Levi.
A primeira obra, “Eine Frau in Berlin – Uma Mulher em Berlim”, publicada inicialmente em 1954 na Alemanha, tratava do relato autobiográfico de Marta Hiller sobre a onda de estupros massivos e contínuos promovida pelo Exército Vermelho quando de sua invasão à Berlim em 1945, de população sobrevivente quase totalmente feminina5, como punição (revestida de nacionalismo) pelos russos aos alemães nazistas. Na época, a obra obteve grande rechaço popular com baixas vendas e críticas negativas, acusando-a de "sujar" a honra das mulheres alemãs e só viria a quebrar o tabu silencioso na década de 2000 com a produção cinematográfica “Anonyma - Eine Frau in Berlin” de 2008 6, de caráter dramático, sensacionalista, porém revelador dentro de um tabu de décadas mantido velado pela sociedade alemã.

3     “Somados seus esforços, Stalin e Hitler, entre 1939 e 1943, expatriaram, deslocaram, expulsaram, deportaram e dispersaram cerca de 30 milhões de pessoas.” – em JUDT, Tony. Pós-Guerra: uma história europeia desde 1945. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva. 2008. pp. 36
4     Filme - “A Trégua/ The Truce”. de Francesco Rosi, Itália-França-Rússia-Suíça, 1997. Baseado no romance autobiográfico homônimo de Primo Levi.
5     HILLER, Marta. Eine Frau in Berlin, diary from 20 April to 22 June 1945, Die Andere Bibliothek Band Nr. 221, ISBN 3-8218-4534-1
6     Filme - Anonyma - Eine Frau in Berlin , produção teuto-polonesa de 2008, roteirizado e dirigido por Max Färberböck, baseado no livro Uma Mulher em Berlim 


A segunda obra, “É isto um homem?” foi publicada em 1947, trazendo uma literatura de testemunho onde Primo Levi, judeu italiano sobrevivente de Auschwitz, relata os horrores do extermínio judaico através da narração de histórias pessoais de vítimas, enfatizando a destituição do estatuto humano dos presos por via da destituição de suas posses, roupas, cabelos, falas, intimidades, em suma, suas identidades e personalidades, reduzindo-os a um número tatuado no braço, levando-os à perda do espírito e dignidade humanas, convertendo-os em um sub-produto humano indiferente aos demais e a si mesmo, passivo e sem reação.
Entretanto, esta literatura narrativa de testemunho traz alguns problemas quando contraposta ao estatuto da História, como observa Beatriz Sarlo em sua metodologia de análise 7, onde tais relatos devem, antes de tudo, ser passíveis de interpretação como discursos públicos, procuradores da memória alheia e permeados pela retórica do convencimento, reservado aos mesmos o valor da narrativa como discurso revelador da experiência e válido como prova jurídica do passado, porém não se tratando de História por se encontrarem univitelinamente presos ao corpo e tragédias vivas do narrador.
Salvo tais precauções, o testemunho se faz então documento como fonte à análise, como crítica e interpretação à construção da História, mas não como verdade – Quem testemunha? Quando? Onde? Como? Porquê testemunha?
Apoiados nestes tipos de testemunhos narrativos, as produções cinematográficas a partir da década de 1950 seriam apresentados às massas como instrumentos de garantia de direito à memória e a serviço da revelação sobre a verdade do horror então velada pelo totalitarismo. Em meio a fase de julgamentos dos crimes de guerra convertidos em espetáculos televisivos, como analisado por Hannah Arendt 8 , a filmografia atuaria sob um espectro político de poder, determinante de uma a dinâmica contraditória de recuperação da memória pós-guerra e de sua intrínseca obliteração promovida dentro de um pacto de reordenação e governabilidade das lideranças em meio a reconstrução e restauração da ordem européia nos pós-guerra.


7     SARLO, Beatriz  Tiempo Pasado. Cultura de La memoria y giro subjetivo. Buenos Aires. 2005
8     ARENDT, Hanah. Eichman em Jerusalém - um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Diagrama & Texto, 1983.


            Desta forma, esta contradição promovida no paralelo entre construção e obliteração simultânea da memória popular pelos veículos de comunicação em massa, se daria como instrumento de manipulação social através do tamponamento da memória como fundamento da restituição das ordens estabelecidas ou restabelecidas dentro de dois eixos que promoveram este modelo de forma de obliteração como legítimos – 1) pela exploração do trauma e silêncio; 2) através do espetáculo em massa.
            A partir desta direcionada e parcial legitimação institucional midiática da memória, o terror da 2ª guerra promovido pelo nazismo e fascismo foi massivamente retratado então à opinião pública como uma espécie de exceção, como um extremo lapso racional, e não como um projeto racional da arquitetura da destruição disfarçada sob a falácia utópica de justiça moral nacionalizada.
            Esta construção da memória selecionada e direcionada se daria então em uma relação não desacobertadora, mas ocultadora e manipuladora, através do sensacionalismo fomentado pelo trauma social vivido na 2ª guerra mundial e no pós-guerra, como bem sintetizaria Orwell em sua obra literária 1984  9 :

"Quem controla o passado, controla o futuro.
Quem controla o presente, controla o passado.
Quem controla o presente, agora?
Testemunhe: está logo atrás da porta.” 
 
9     ORWELL, George. 1984.   São Paulo. Editora Nacional. 1984.  

Através da construção da memória obliterada de forma institucional por via desta práxis dramática, surgiriam assim, derivando das mesmas, a figura dos heróis, do “bem” contra o “mal”, das vítimas do extermínio e de seus libertadores mitificados, deste modo, antes cúmplices e então, defensores da paz e da liberdade e novos proprietários da narrativa legitimada, selecionada e ideológica, num processo cujo produto final se apresentaria no modelo calcado do horror espetacularizado, traumático e heroificado, totalmente alienado do estatuto da História, conforme observado na analise de Beatriz Sarlo – “Quando a narração se separa do corpo, a experiência se separa de seu sentido” 10.
Tais heroificações e vitimizações sensacionalistas (apesar da factível mégalo-tragédia) ocasionariam a supressão da rememoração como denunciante do terrorismo promovido pelo Estado, ante as construções novelescas rememorativas citadas, tratando sensacionalmente das causas e ocultando o cerne de suas consequências.
Contudo, estas rememorações construídas se fizeram centrais na restauração das relações sociais perdidas durante o conflito, frente à destruição física que atingiu todos extratos sociais e remodelou as relações sociais imediatas do pós-guerra entre os sobreviventes (órfãos, refugiados, perdedores, vencedores, ex prisioneiros, etc), antes estranhos entre si 11.
Dava-se, desta forma, o tamponamento da memória como inquiridora crítica dos motivos políticos que “justificaram” a limpeza étnica e política na Europa e alavancaram o totalitarismo como força política contra a secular e supostamente irreversível conquista universal dos direitos humanos.

          E eis aqui o ponto - a construção da memória desde o pós-guerra em formato sensacional/dramático, e não crítico, como inquiridora de uma razão européia inquestionada, dogmática e falida, apologista ao horror cíclico.
Maquiavel, em seu clássico “O Príncipe”, quase que preveria esta obliteração do essencial mote filosófico e político do totalitarismo frente à exploração do sensacional romantizado e massificado, conforme sua própria análise:

"[...] qualquer alteração na ordem das coisas prepara sempre o caminho para outras mudanças, mas num reinado os motivos e as lembranças das inovações vão sendo esquecidos." 12
 
10     SARLO, Beatriz  Tiempo Pasado. Cultura de La memoria y giro subjetivo. Buenos Aires. 2005
11     JUDT, Tony. Pós-Guerra: uma história europeia desde 1945. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva. 2008.
12     MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo. Editora Martin Claret. 2007 
 

Entre História e testemunho, métodos e estatutos, ciência e literatura, enquanto a narrativa descreve o animal humano que avança e adentra mais um século tangido pela crença da lição aprendida, observamos a dança das cadeiras no salão nobre se repetindo.  
Iniciado o século XXI, as peças do tabuleiro se reacomodam, as máscaras se remodelam e trocam de rostos, onde as vítimas perseguidas de outrora agora se insurgem como os novos carrascos, reinventando seus meios de violência e opressão, restaurando seus campos de concentração e seus novos motivos ideológicos consumidores de matéria e de espírito humano alheio.
Enquanto os novos velhos “ismos” repousantes se reciclam, trocando seus prefixos, caras e bocas, Marx nos recorda 13 da antiga tragédia original e de suas falaciosas repetições históricas – nossa infinda travessia pela longa noite escura. 


 
Ricardo Luiz
Setembro de 2012