História, Testemunho e
Interpretação no Pós-Guerra
“Não fale do
medo que temos da vida.
Não ponha o dedo
na nossa ferida.”
- Ivan Lins, “Cartomante”
No ano de 2001, quando estive em Munique, na Alemanha, aproveitei a oportunidade para visitar as ruínas e o museu de memória semita que hoje compõe o ex campo de concentração nazista de Dachau 1. Na ocasião, após me informar com a população local sobre o paradeiro e o itinerário que me levaria ao memorial do campo de extermínio, enquanto esperava num ponto de ônibus, puxei conversa com um senhor alemão aparentemente sexagenário, que também aguardava o transporte sentado ao meu lado. Trocamos um diálogo sobre banalidades triviais – de onde éramos, o que fazíamos, sobre pontos comuns entre Alemanha e Brasil - até que ao sentir que a conversa amolecera, perguntei sobre suas memórias a respeito da 2ª. guerra mundial. “Não falamos sobre isso”, ele respondeu, encerrando a conversa educadamente.
Em
pleno século XXI e há mais de seis décadas após o horror, apesar dos avanços na
quebra do silêncio através de produções documentais, literárias e cinematográficas
iniciadas paulatinamente no período pós-guerra e acentuada sobre tudo após a
Guerra Fria2,
o trauma e o tabu ainda se apresentam pungentes entre carrascos e vítimas, atores
e testemunhas, sub-homens de um conflito inconcluso – a mudez ante o terror
genocida produzido pelas utopias do totalitarismo na 2ª guerra.
2 CANCELLI, Elizabeth. Testemunho e obliteração: da
tragédia ao melodrama. Pag. 5
A
construção da memória por via testemunhal atravessaria paralelamente a
reconstrução não somente física, mas psicológica e ideológica da Europa
sobrevivente, dentro da famosa tônica do “tempo ao tempo”, em vista da
reordenação caótica iniciada no pós-guerra em 1945, em meio às lentas e
torturantes repatriações em massa de dezenas de milhões de europeus 3 4, conflitos remanescentes
subsequentes e ajustes de contas violentos (punições civis) entre vencedores e
derrotados, numa dinâmica de acentuação da produção testemunhal proporcional a
um distanciamento à década de 1940.
O
esquecimento e o silêncio, tomados como espécie de morfinas iniciais do
pós-guerra, dariam então lugar a dilacerante dor crônica espiritual das
testemunhas do horror a partir da 1ª década do pós-guerra, através da produção
da literatura de testemunho, a exemplo das obras de Marta Hiller e Primo Levi.
A
primeira obra, “Eine Frau in Berlin – Uma Mulher em Berlim”, publicada inicialmente
em 1954 na Alemanha, tratava do relato autobiográfico de Marta Hiller sobre a
onda de estupros massivos e contínuos promovida pelo Exército Vermelho quando
de sua invasão à Berlim em 1945, de população sobrevivente quase totalmente feminina5,
como punição (revestida de nacionalismo) pelos russos aos alemães nazistas. Na
época, a obra obteve grande rechaço popular com baixas vendas e críticas
negativas, acusando-a de "sujar" a honra das mulheres alemãs e só
viria a quebrar o tabu silencioso na década de 2000 com a produção
cinematográfica “Anonyma - Eine Frau in Berlin” de 2008 6, de caráter dramático, sensacionalista, porém revelador dentro de
um tabu de décadas mantido velado pela sociedade alemã.
3 “Somados seus esforços, Stalin e Hitler, entre 1939
e 1943, expatriaram, deslocaram, expulsaram, deportaram e dispersaram cerca de
30 milhões de pessoas.” – em JUDT, Tony. Pós-Guerra:
uma história europeia desde 1945. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva. 2008. pp.
36
4 Filme - “A Trégua/ The
Truce”. de Francesco
Rosi, Itália-França-Rússia-Suíça, 1997. Baseado no romance autobiográfico
homônimo de Primo Levi.
5 HILLER, Marta. Eine Frau in Berlin, diary from 20 April to 22 June 1945, Die Andere Bibliothek Band Nr. 221, ISBN 3-8218-4534-1
6 Filme - Anonyma - Eine Frau in Berlin , produção teuto-polonesa de
2008, roteirizado e dirigido por Max Färberböck, baseado no livro Uma Mulher
em Berlim
A
segunda obra, “É isto um homem?” foi publicada em 1947, trazendo uma literatura
de testemunho onde Primo Levi, judeu italiano sobrevivente de Auschwitz, relata
os horrores do extermínio judaico através da narração de histórias pessoais de
vítimas, enfatizando a destituição do estatuto humano dos presos por via da
destituição de suas posses, roupas, cabelos, falas, intimidades, em suma, suas
identidades e personalidades, reduzindo-os a um número tatuado no braço, levando-os
à perda do espírito e dignidade humanas, convertendo-os em um sub-produto
humano indiferente aos demais e a si mesmo, passivo e sem reação.
Entretanto,
esta literatura narrativa de testemunho traz alguns problemas quando
contraposta ao estatuto da História, como observa Beatriz Sarlo em sua metodologia
de análise 7,
onde tais relatos devem, antes de tudo, ser passíveis de interpretação como
discursos públicos, procuradores da memória alheia e permeados pela retórica do
convencimento, reservado aos mesmos o valor da narrativa como discurso revelador
da experiência e válido como prova jurídica do passado, porém não se tratando
de História por se encontrarem univitelinamente presos ao corpo e tragédias
vivas do narrador.
Salvo
tais precauções, o testemunho se faz então documento como fonte à análise, como
crítica e interpretação à construção da História, mas não como verdade – Quem
testemunha? Quando? Onde? Como? Porquê testemunha?
Apoiados
nestes tipos de testemunhos narrativos, as produções cinematográficas a partir
da década de 1950 seriam apresentados às massas como instrumentos de garantia de
direito à memória e a serviço da revelação sobre a verdade do horror então
velada pelo totalitarismo. Em meio a fase de julgamentos dos crimes de guerra
convertidos em espetáculos televisivos, como analisado por Hannah Arendt 8
, a filmografia atuaria
sob um espectro político de poder, determinante de uma a dinâmica contraditória
de recuperação da memória pós-guerra e de sua intrínseca obliteração promovida dentro
de um pacto de reordenação e governabilidade das lideranças em meio a
reconstrução e restauração da ordem européia nos pós-guerra.
7 SARLO,
Beatriz Tiempo Pasado. Cultura de La memoria
y giro subjetivo. Buenos Aires. 2005
8 ARENDT, Hanah. Eichman em Jerusalém - um
relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Diagrama & Texto, 1983.
Desta forma, esta contradição
promovida no paralelo entre construção e obliteração simultânea da memória
popular pelos veículos de comunicação em massa, se daria como instrumento de manipulação
social através do tamponamento da memória como fundamento da restituição das
ordens estabelecidas ou restabelecidas dentro de dois eixos que promoveram este
modelo de forma de obliteração como legítimos – 1) pela exploração do trauma e silêncio;
2) através do espetáculo em massa.
A partir desta direcionada e parcial legitimação institucional
midiática da memória, o terror da 2ª guerra promovido pelo nazismo e fascismo
foi massivamente retratado então à opinião pública como uma espécie de exceção,
como um extremo lapso racional, e não como um projeto racional da arquitetura
da destruição disfarçada sob a falácia utópica de justiça moral nacionalizada.
Esta construção da memória selecionada e direcionada se
daria então em uma relação não desacobertadora, mas ocultadora e manipuladora,
através do sensacionalismo fomentado pelo trauma social vivido na 2ª guerra
mundial e no pós-guerra, como bem sintetizaria Orwell em sua obra literária 1984 9
:
"Quem
controla o passado, controla o futuro.
Quem
controla o presente, controla o passado.
Quem
controla o presente, agora?
Testemunhe: está logo atrás da porta.”
9 ORWELL, George. 1984.
São Paulo. Editora Nacional. 1984.
Através
da construção da memória obliterada de forma institucional por via desta práxis
dramática, surgiriam assim, derivando das mesmas, a figura dos heróis, do “bem”
contra o “mal”, das vítimas do extermínio e de seus libertadores mitificados,
deste modo, antes cúmplices e então, defensores da paz e da liberdade e novos proprietários
da narrativa legitimada, selecionada e ideológica, num processo cujo produto
final se apresentaria no modelo calcado do horror espetacularizado, traumático
e heroificado, totalmente alienado do estatuto da História, conforme observado
na analise de Beatriz Sarlo – “Quando a narração se separa do corpo, a experiência
se separa de seu sentido” 10.
Tais
heroificações e vitimizações sensacionalistas (apesar da factível
mégalo-tragédia) ocasionariam a supressão da rememoração como denunciante do terrorismo
promovido pelo Estado, ante as construções novelescas rememorativas citadas,
tratando sensacionalmente das causas e ocultando o cerne de suas consequências.
Contudo,
estas rememorações construídas se fizeram centrais na restauração das relações
sociais perdidas durante o conflito, frente à destruição física que atingiu todos extratos sociais e remodelou as
relações sociais imediatas do pós-guerra entre os sobreviventes (órfãos,
refugiados, perdedores, vencedores, ex prisioneiros, etc), antes estranhos
entre si 11.
Dava-se,
desta forma, o tamponamento da memória como inquiridora crítica dos motivos
políticos que “justificaram” a limpeza étnica e política na Europa e
alavancaram o totalitarismo como força política contra a secular e supostamente
irreversível conquista universal dos direitos humanos.
E eis aqui o ponto - a construção da memória desde o pós-guerra em formato sensacional/dramático, e não crítico, como inquiridora de uma razão européia inquestionada, dogmática e falida, apologista ao horror cíclico.
E eis aqui o ponto - a construção da memória desde o pós-guerra em formato sensacional/dramático, e não crítico, como inquiridora de uma razão européia inquestionada, dogmática e falida, apologista ao horror cíclico.
Maquiavel,
em seu clássico “O Príncipe”, quase que preveria esta obliteração do essencial mote
filosófico e político do totalitarismo frente à exploração do sensacional romantizado
e massificado, conforme sua própria análise:
"[...] qualquer alteração na
ordem das coisas prepara sempre o caminho para outras mudanças, mas num reinado
os motivos e as lembranças das inovações vão sendo esquecidos."
12
10 SARLO, Beatriz
Tiempo Pasado. Cultura de La memoria y giro subjetivo. Buenos Aires.
2005
11
JUDT, Tony. Pós-Guerra: uma história europeia desde 1945. Rio de Janeiro, Ed.
Objetiva. 2008.
12
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo. Editora Martin
Claret. 2007
Entre
História e testemunho, métodos e estatutos, ciência e literatura, enquanto a
narrativa descreve o animal humano que avança e adentra mais um século tangido
pela crença da lição aprendida, observamos a dança das cadeiras no salão nobre se
repetindo.
Iniciado
o século XXI, as peças do tabuleiro se reacomodam, as máscaras se remodelam e
trocam de rostos, onde as vítimas perseguidas de outrora agora se insurgem como
os novos carrascos, reinventando seus meios de violência e opressão, restaurando
seus campos de concentração e seus novos motivos ideológicos consumidores de matéria
e de espírito humano alheio.
Enquanto
os novos velhos “ismos” repousantes se
reciclam, trocando seus prefixos, caras e bocas, Marx nos recorda 13 da
antiga tragédia original e de suas falaciosas repetições históricas – nossa
infinda travessia pela longa noite escura.
Ricardo
Luiz
Setembro
de 2012