26 de dezembro de 2013

O Natal

Jesus ou Yeshua Ben-Yosef - árabe, periférico, rebelde, desordeiro, confrontou a ordem de seu tempo, combateu o sacerdócio local e o poder imperialista, vandalizou o comércio e condenou a usura, criticou a exploração e concentração de riquezas e a desigualdade social, defendeu a partilha material entre toda a sociedade e o direito de igualdade entre todos os homens, desrespeitou e desprezou a hierarquização social, o status quo, causando um levante popular que terminou com sua prisão, tortura e assassinato. Por isso o Natal é a cereja do bolo da hipocresia global de um mito apropriado, reformulado, ideologicamente invertido, imposto e propagado para a dominação e submissão massiva. Nessa noite, levantem um brinde ao sagrado espírito da mudança, a qual urge frente a triste realidade de nosso tempo, e não à mentiras milenares que só reforçam e perpetuam o histórico estado hediondo das coisas. E brindem ao respeito por todos os homens e pela Terra em todas suas formas de vida, ao contrário do que o tal consumismo capitalista cristão tem propagado sistematicamente em todas suas formas históricas de violência humana e ambiental. Feliz Natal.

(RL)

 

1 de dezembro de 2013

Amigos, Loucos e Santos



Antônio Abujamra declama "Loucos e Santos" de Oscar Wilde

Cazuza

Olhar o mundo
Com a coragem do cego
 

Ler da tua boca as palavras
Com a atenção do surdo
 

Falar com os olhos e as mãos
Como fazem os mudos


- Diário de Cazuza (1978)

20 de novembro de 2013

A Cor da Amizade


... ou “Memórias de um Tempo Inocente”.

 

Falar sobre isso é falar sobre uma das lembranças mais remotas de minha vida, como o dia que minha mãe me deixou na escola pela primeira vez (com cinco anos de idade). Essa é a lembrança mais antiga que tenho em mim. E a lembrança de Plínio é a segunda lembrança mais antiga que guardo. Afinal, estou falando de meu primeiro amigo, daqueles casuais, fora do tradicional círculo social imãos-primos-vizinhos da infância caseira e bairrista de uma criança que parte daí para conhecer o mundo, iniciando a peregrinação pela escola.

Era 1980 e, através de um malabarismo de minha mãe,  eu havia ingressado no primeiro ano do primário numa escola pública no centro da minha cidade, nas chamadas “escolas modelo”, que eram escolas “diferenciadas” (desde programa, professores, materiais didáticos, infraestrutura e até refeição) para as elites da grande São Paulo, pois para matricular-se nelas, era necessário comprovar endereço próximo à escola (e as mesmas ficavam apenas em bairros mais “nobres”). Claro, forjávamos um endereço falso para isso. Dada a problemática do transporte frente ao custo-benefício, no segundo ano primário (hoje “básico”) fui transferido por meus pais para outra escola pública em meu bairro.

Eu devia ter meus sete anos de idade, e agora estudava há uns cinco quilômetros de nossa casa. Eu ia a pé para escola junto com outros moleques do bairro, saímos no mesmo horário e íamos no caminho juntando e engrossando a tropa. Ato impensável pros dias de hoje.  Eram outros tempos. Tempos de menor inchaço e caos urbano. Tempos em que passávamos o dia brincando a solta pelas ruas. Tempos de recessão e dificuldades pelo rescaldo do arrocho salarial acumulado durante décadas do “milagre econômico” da ditadura militar. Escola particular para os filhos não listavam no orçamento de um casal trabalhador de classe média baixa, quanto mais transporte escolar. Eram luxos impensáveis, hoje tão corriqueiros à atual denominada geração “Y”. A que não sabe o valor de nada, apenas o preço de tudo.  

Chegado ao novo ambiente (a nova escola), diferenças chamavam a atenção até mesmo à uma criança de sete anos de idade (como eu) em comparação à outra escola anterior (a elitizada). Em primeiro lugar – na nova escola haviam negros. Isso era o mais notório, e daí partia-se à observação das consequências reais advindas disto, desde as vestes, as posses, a realidade doméstica e material, os assuntos pessoais de seus cotidianos na hora do recreio e demais detalhes de classe e étnicos referentes à gente do meu bairro. 

Meu bairro era um bairro proletário e residencial da classe operária metalúrgica do Grande ABC,  constituído por descendentes da formação demográfica histórica de São Paulo (europeus, nipônicos, negros e nordestinos) , formado por casas térreas simples de dois ou três cômodos, além de favelas entremeando as vilas (muitas sem saneamento, pavimentação, luz e água, como as “comunidades” de hoje). E essa geografia refletia o panorama social para dentro da escola – haviam desde alunos filhos de funcionários de grandes metalúrgicas (familiarmente mais estáveis, com roupas e calçados melhores)  à crianças de chinelo de dedo e maltrapilhas, com peça única de roupa para toda semana (alguns órfãos e filhos de detentos ou de mães solteiras). 

Eu era um moleque tímido (coisa que se extinguiu na década seguinte em minha biografia) e nesta fase, fiz minha primeira amizade na escola. Plínio era um garoto tranquilo, miudinho e levado. Não fazia o tipo dos violentos, que eram em grande número e que carregavam suas frustrações sociais, traumas pessoais e ódios para o círculo sócio-escolar. Brigas (violência) eram prática constante ( diferentemente da primeira escola), e eu e Plínio ficávamos sempre mais de escanteio, só na infantilidade mesmo, ocupados em  viver uma infância inocente e “impopular”. 

Lembro de certa vez que combinamos de fazer um trabalho na casa dele. Combinei com minha mãe que só voltaria mais no fim da tarde. Ela topou e pediu o endereço da casa de Plínio por segurança. No dia combinado, saímos da escola e fomos pra sua casa. Lá conheci sua mãe, e me marcaram para sempre sua beleza e sua gentileza para comigo, um estranho até então. Era a primeira vez que eu ia à casa de meu primeiro amigo, e estas memórias se cristalizam em cheiros, sons e imagens de uma intimidade familiar alheia à minha até então. 

Estudamos juntos por uns dois anos, e devido a relativa distância de nossas casas, só nos víamos mesmo na escola, até que depois de umas férias escolares de verão e dada a volta às aulas, Plínio não apareceu mais na escola.
 
Fui à sua casa procurá-lo depois deste primeiro dia de aula. Chamei por várias vezes e não havia ninguém. A casa parecia desabitada e fui informado por vizinhos que eles haviam se mudado durante as férias.  

Nunca mais vi ou soube de Plínio. Também nunca soube dos motivos de sua mudança. Mas ele nunca saiu de minha memória, pois uma amizade inocente, infantil, pura, verdadeira e desinteressada marcam uma vida toda frente ao mundo que a mim seria revelado à  partir da juventude, onde a maioria das relações sociais se desvelariam permeadas por interesses e clientelismo no chamado sistema produtivo (ou mercado de trabalho). 

Nos próximos anos que se seguiram, viria a maturidade junto das desilusões graduais da realidade adulta. Vieram os fatos sociais e econômicos que me despertariam à politização e o gosto incessante pelo entendimento do mundo, em suas mais complexas variáveis (caminho oposto ao da maioria do gado social, que é o do estabelecimento, da despolitização e da confortável alienação à realidade). 

Mas por que comecei a falar nisso agora? E o que minha formação de valores pessoais e consciência social tem a ver com Plínio? 

Há um detalhe que não citei anteriormente – Plínio é negro. 

Meu primeiro amigo nesta vida é um negro. E eu sou um branco.  

Mas onde quero chegar com essa observação? E qual a provocação e reflexão a ser tratada aqui?  

Na verdade, não somos coisa alguma além de seres humanos. A questão de ser negro ou branco ou o que quer que seja faz parte de uma construção ideológica racista, a ser demolida através da tomada de consciência acerca de suas consequências históricas refletidas no presente. E, para tal, é necessário tomar conhecimento histórico para esta reflexão e tomada de consciência frente à realidade ignorada, camuflada e negada pela hegemonia branca nos âmbitos social, político e econômico brasileiros. 

Eu era apenas uma criança. Uma criança inocente, nascida em uma família de descendência europeia, católica, conservadora, autoritária, ignorante, branca, mediana, despolitizada. E racista. Ora implícita, e ora declarada e explicitamente racistas, pessoas do meu círculo social e familiar começaram a me chamar a atenção nestes vindouros anos pós Plínio que vieram por despertar meu senso crítico ao cotidiano social dentre o que a sociologia chama de “racismo à brasileira” (racismo velado, não declarado, presente, atuante, arquitetado e incólume às leis anti-racistas oriundas da Constituição de 1988.)  

Durante os posteriores anos pós Plínio, descobri dentre várias coisas que o racismo é uma definição “intelectual” (sic) e ideológica. É algo que é “ensinado”, assim como quase tudo nesta vida, nos formatando (adestrando) à pseudo-valores ditados pelo status-quo à sociedade. 

E descobri mais coisas relativas ao racismo, tanto no campo da erudição (com minha 2ª. formação superior em História, como a formação histórica escravocrata do Brasil),  mas sobretudo, no campo da observação cotidiana destas permanências histórico-ideológicas de preconceito e seus desdobramentos sociais.  Pois, a existência do ideário racista, não se aprende abstratamente e apenas em livros e teses de “doutores” da academia eurocêntrica.  

Exemplos pessoais e autobiográficos, mais pungentes e práticos, não me faltaram. Nas “peneiras sociais” que atravessei, como vestibulares, entrevistas de emprego, promoções profissionais, aumentos salariais e relações sócio-econômicas em geral, o racismo sempre se mostrou presente e evidente. 

Da boca de um parente muito próximo, ouvi coisas tão surreais quanto as teses racistas europeias forjadoras de justificativas imperialistas-civilizatórias na África do século XIX, assim como as teses jurídico-religiosas apologistas e legitimadoras da escravidão africana colonial do século XV, à exemplo: “Negros são inferiores, pois a escravidão é a própria prova de que eles são fracos e se submeteram e  se conformaram à isto.” Da boca de outro, ouvi: “Não sou racista, mas não permitiria que minha filha se relaciona-se com um negro”. De um conhecido “jurista”, ouvi: “Não sou racista. Já até peguei uns casos de negros. (!) Minha família até é, e acho natural. É como diz meu avô – pena que a lei não nos permite mais, pois se não o fosse, teria logo uns três (escravos) lá em casa”.  De uma senhora mui respeitosa da família, ouvi a sentença: “Cuidado com os pretos. Eles são gente suja, incapaz e desonesta. Por isso estão onde estão.” 

Em todas as salas sociais de classe média por onde transitei, 90% das empregadas domésticas são negras ou afrodescendentes . Empregadas estas que nem sequer tinham seus direitos trabalhistas reconhecidos até ontem, em pleno século XXI, confirmando o ideário excludente e ausências de políticas e direitos básicos (e que causaram reações bizarras da mídia e das elites). Há pouco nasceu minha 1ª. filha, e nos últimos meses frequentei consultórios obstetrícios particulares. Durante nove meses, duas coisas me chamaram a atenção: nunca vi um paciente negro na sala de espera (nem sequer na conceituada maternidade, depois), e em todas dezenas de revistas sobre bebês que folheei neste período, nunca vi uma foto sequer de um bebê negro em nenhum artigo ou propaganda das edições. Vivo em bairro de classe média relativamente seguro, e em minha quadra, de cerca de 100 residências, umas 2 são de propriedade de negros. Por todas as grandes empresas pelas quais passei durante minha 1ª. carreira profissional, nos quadros de chefia, gerência e diretoria, 95% dos mesmos eram compostos por brancos. Na universidade na qual curso minha 2ª. formação - em Humanidades - (a maior da América Latina) o quadro de professores, alunos e funcionários é composto por uma maioria absoluta de brancos (em algumas carreiras não há sequer alunos ou professores negros), refletindo a arquitetura da exclusão histórica e vigente. Isso sem contar sobre as estatísticas alarmantes de homicídios, sobretudo policial sobre a população negra e jovem das periferias dos grandes centros urbanos. 

É como se comprova no que chamam o “Teste do Pescoço” – incline o pescoço pra dentro dos mais diversos círculos sociais privilegiados e observe se há negros. E, “se houverem”, observe ao que estão relegados e submetidos. 

Círculos, círculos, círculos. Ou melhor: quadrados. Muros invisíveis bem delineados de nosso “apartheid” tupiniquim. 

Por acaso do destino (e não por regra), eu e Plínio fomos imunizados a esta maldição histórica, já que antes mesmo de sermos doutrinados ideologicamente pela sociedade acerca da divisão de “raças” e suas determinantes sócio-econômicas, éramos apenas pequenas pessoas livres, compartilhando com igualdade e respeito nossas vidas e nossa amizade sincera.

Mas ao tomar minha própria experiência biográfica, assim como básico conhecimento histórico acerca da formação da sociedade brasileira e das recorrentes políticas de exclusão dos negros e nativos indígenas pelos Estados monárquico e republicano após o fim da escravidão legal, estou mais do que certo em afirmar com muita base e propriedade que exceções como o acaso do meu destino não são e nem serão suficientes para romper a maldição do preconceito racista e da arquitetura da exclusão que são mais do que evidentes na sociedade brasileira, apesar dos limitados avanços após a fase de redemocratização do país. 

Portanto sou totalmente consciente de que se faz mais do que urgente o fomento de políticas inclusivas, assim como reforço em educação e conscientização acerca do histórico retrato social desigual e preconceituoso e combate à hipocrisia do mito da democracia racial brasileira, em amplo e inesgotável debate cívico nacional em todas e quaisquer esferas públicas, privadas, institucionais e gerais. 

Estou certo de que minha filha, a meu exemplo, romperá tal maldição histórica em sua trajetória, já que será conscientizada à tal. Mas, infelizmente, sei que os demais serão reprodutores e mantenedores desta mesma maldição, dado o fato social mais do que evidenciado e recorrente. 

Penso sempre em Plínio, nesses momentos de reflexão. Penso como terá sido sua trajetória até aqui, onde adentramos a quatro décadas de existência. Penso se nosso acaso terá tido para ele o mesmo significado que teve para mim, mesmo sabendo das condições e regras do jogo desiguais de nossas estradas. Penso em algum dia poder reencontrá-lo em uma sociedade livre de grilhões mentais e mais igualitária de fato, próxima ao tão almejado espírito atemporal de liberdade. 

Penso acerca da tomada da consciência negra, frente à histórica, violenta e hegemônica inconsciência branca. E, ainda mais e além, penso na descoloração das relações humanas planetárias, nalgum dia enfim tão límpidas, puras e fluentes como a água e o ar de nossa Mãe única e natural. 

Axé!  

 
(RL)

19 de novembro de 2013

O Povo Brasileiro

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o corpo e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e nos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar, no dia seguinte, até à exaustão.

Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos –, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas para trabalhar atento e tenso. Semanalmente, vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação de dedos, do furo de seio, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob 300 chicotadas de uma vez, para matar, ou 50 chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos. Descendentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.



Darcy Ribeiro


em “O Povo Brasileiro”, ed. Companhia das Letras, 1995. 


29 de outubro de 2013

A Cor da Violência Policial


Notícias seculares - SP: adolescente morto por PM é enterrado sob comoção e revolta

"Sérgio Martins, vizinho de Douglas, disse que presenciou a abordagem policial. "Eu estava sentado na frente de um bar e vi a polícia passando. De repente, eles voltaram, e, quando pararam, já ouvi o tiro. Ninguém falou nada antes do disparo. A única coisa que eu ouvi depois foi o Douglas dizendo: 'por que o senhor atirou em mim?'", disse ele."

"Helena Martins Santana, avó materna do garoto, lembrou que há 20 anos perdeu seu filho de maneira semelhante. "Também foi em um domingo e enterramos o corpo dele na segunda-feira. Foi só porque meu neto era pobre. Eu perdi meu filho de 18 anos do mesmo jeito. Morto pela polícia. Ele não fez nada de errado", disse ela."

Os neo capitães do mato agem novamente. E de novo. E de novo. E novamente, a mando de um estado representado e controlado por uma histórica classe senhorial, suportada por um eleitorado classistamente mediano, sobretudo em regiões mais conservadoras e reacionárias do país, como o estado de São Paulo.

As estatísticas, ocultadas pela mídia oligárquico-senhorial neo feitora, apontam para genocídio sistemático. A violência, militarizada, deliberada, abusiva e disfarçada de autoridade ordeira, além de práxis cotidiana bem conhecida pelas periferias brasileiras, espelha a corrosão de valores aparentes de tutela social do Estado e a corrupção que permeia toda a hierarquia institucional do Estado brasileiro.

O perfil das vítimas é sempre o mesmo: jovem, preto, pobre. Segundo estudos atuais, existe racismo institucional no país, expresso principalmente nas ações da polícia, mas que reflete o desvio comportamental presente em diversos outros grupos, inclusive aqueles de origem dos seus membros.

Em meio à essa guerra ocultada, todo e qualquer levante popular contra a barbárie policial racista será sempre criminalizado e deslegitimado quando narrado através da boca do feitor midiático, capataz de sinhozinho estatal e privado. Afinal, quilombo é quilombo e resistirá em toda e qualquer estrutura sócio-político-ideológica exclusora, violenta e racista.

Sinhozinho é bom negócio para feitor. Feitor é bom negócio para capitão do mato. Carne preta da neo senzala é bom negócio para neo engenho de sinhozinho, feitor e capitão do mato. Estes, gente do bem, contra o mal inventado por eles, em seu podre negócio mundano. E de novo. E de novo. E novamente.
 
Até quando?


(RL)

28 de outubro de 2013

Dez Mil Galáxias...

... através de um olhar do telescópio Hubble.
 
 
"Dois homens olham pela mesma janela.
Um vê a lama. O outro vê as estrelas."
 
Frederick Langbridge

15 de outubro de 2013

Professor


“- Bombeiro!”
Essa foi  a resposta que dei durante toda minha infância e até o início da adolescência, quando questionado sobre “o que queria ser quando crescer”. Não, eu não queria ser soldado. Nem engenheiro, nem magistrado. Eu não queria ser jogador de futebol na Europa. Também não queria ser qualquer tipo de celebridade, como a maioria das crianças, hoje. E tão pouco pensava materialmente no futuro (vida adulta monetária). Ainda não havia sido adestrado a isso, a “vida” ainda não havia sido ditada à mim como uma regra do sistema, fora e apartada do presente, como uma contínua promessa futura. As crianças, dentro de sua brutal e livre sinceridade (vista como defeito a ser socialmente reparado) realmente dizem quem são quando dizem o que querem fazer de suas vidas.
Cresci num bairro de periferia, onde vivo até hoje. Filho de operário e professora, com mais dois irmãos pra rachar um quarto. Muitas contas à vencer, casa comprada em centenas de prestações, grana dos pais contada pras despesas do mês, aluno de escola pública, arroz, feijão e ovo no cardápio diário (aos fins de semana tinha carne) e um par de tênis apenas no armário (o qual muitas vezes era perseguido pelo maldito furo na sola), jogando bola e fubeca com os moleques na rua e no terrão perto de casa como diversão (algo hoje inconcebível ao paulistanóide médio).
Terminando o ensino fundamental (ginásio, como era chamado na época), meu pai teve comigo a velha conversa que todo pai operário tem com seu filho sobre o futuro, o presente, a condição, a realidade do sistema e a necessidade de trabalhar o quão antes para ajudar financeiramente em casa. Foi quando me foi posto e aberto o “menu das profissões” à minha frente - eu, um garoto de 13 anos de idade tendo que “escolher” o que fazer pelo resto de minha curta e breve existência.
Nessa altura do campeonato (adolescência) eu a havia descoberto e havia me apaixonado de corpo e alma pela música, mais propriamente o rock, através de discos dos Beatles abandonados pelos meus tios na casa de meus avós. Eram os anos 80, os gloriosos anos do rock, do heavy metal e do punk por nossas terras, e havia decidido que queria ser músico. Só havia um pequeno problema - “bombeiro” e “músico” não constavam na lista das profissões de sucesso financeiro do cardápio profissional convencional do sistema "produtivo".
Pois afinal, salvar vidas e animar seus espíritos não geram lucro nesse mundo inventado pelos senhores de nosso tempo.
Filho de peão arremessado à concorrência no sistema de ensino médio técnico público, passei em três vestibulinhos de três gloriosas e excitantes carreiras profissionais – informática, eletrônica e química. (lembre-se: eu queria ser bombeiro ou músico). Com um totozinho do velho, acabei optando pela informática ("a profissão do futuro!", nos anos 80). Daí pra frente, foram quase duas décadas de história. Uma história de uma carreira “bem sucedida” no plano material e de frustração/insatisfação pessoal, como a da imensa maioria das pessoas arremessadas e coagidas às restrições existenciais do mercado de trabalho do sistema produtivo (ou destrutivo) atual.
Curioso é que meu primeiro emprego nesta área (oxalá, hoje noutra), talvez tenha sido o melhor de todos. Por acaso do destino, meu primeiro emprego viria a ser o de “professor”. De informática, claro (fazer o quê?), nesses cursos de microcomputação (que era novidade no final dos ´80). Também curiosamente, com meu 1º. salário deste trabalho, comprei meu primeiro instrumento musical, vindo a me tornar músico, paralelamente ao meu emprego financeiro. Alguns anos mais tarde, e paralelamente também (sempre vivi múltiplas vidas em uma), me tornei professor voluntário numa ONG assistencial numa favela próxima à meu bairro, com um projeto de educação cultural à molecada carente de famílias pobres.
Parece que a profissão de professor insistia em cruzar meu caminho. E olhando bem, nada mais natural. Afinal, eu queria ser bombeiro - salvar vidas, ajudar pessoas. E nesse outro rumo descobri um trabalho verdadeiramente útil. Útil à mim, ao próximo, à sociedade e à Terra. Útil à tudo e à todos, sobretudo na carreira de Humanidades, à qual me dediquei após amargos 20 anos no mercado corporativo de informática em segmentos dos setores financeiros e de serviços. Nesta nova profissão descobri mais que um trabalho. Nela, descobri uma missão, uma atuação de muita responsabilidade com a comunidade (conceito em extinção no sistema individual competitivo) e de muita satisfação pessoal. Se numa profissão “comercial” se ganha algum dinheiro para gastar em aparências e conquistas supérfluas, numa profissão de “função social” se ganha uma imensa satisfação existencial, onde a vida é conjugada ao trabalho e ao resgate da dignidade do espírito humano, esta subtraída nos empregos comercias alienantes do sistema produtivo.
A missão é árdua, sabemos. Há muitas pedras no caminho a serem superadas, dentre elas o desdém hierárquico-social pelo educador, a desvalorização da educação (que não seja a instrução-adestramento técnico científico profissional) no sistema produtivo em todos seus níveis e a própria dificuldade material-financeira da profissão de professor, decorrente desta corrupção sistemática e seus desvalores.
Mas nada se compara ao prazer de atuar em educação com o sentimento de construção de algo intangível materialmente e maior espiritualmente, frente ao desgosto de atravessar tantas e tantas reuniões de negócios com a certeza do tempo perdido na breve vida. Nada se compara à satisfação de poder construir com educação novas possibilidades frente à destruição inerente atual, rumo a um novo ideário que transforme, revolucione e reverta o catastrófico quadro planetário do falacioso modelo de progresso imposto pelo sistema, repetido inquestionadamente e idolatrado por gerações através da História. História, aliás, minha nova casa. Meu novo endereço. Minha nova vida.
Ser professor de Humanidades não se resume a repassar conteúdos e conhecimentos convencionados e ditados. Não é simplesmente instruir, no sentido de ditar verdades pré-definidas. Ser professor é, sobretudo, a arte de desconstruí-las, mostrando que nada se dá como “natural” ou “normal” e que tudo é possível no sentido de se trilhar novos caminhos. Educar não consiste, portanto, no ofício de formatar o pensamento com ditames apropriados por instituições acadêmicas, privadas ou governamentais, mas na tarefa de potencializar a capacidade de questionamento e instigar o pensamento crítico à uma sociedade integrada ao meio natural ao qual pertencemos, e não o contrário em voga.
Educação, assim como a vida, é desta forma uma pergunta, não uma resposta, tendo no professor o suporte à respostas de uma base de conhecimento pré-concebido historicamente à construção de novos saberes através do “livre” pensamento, onde o mesmo jamais esteja restrito à imposições de interesses de poder material e onde nenhuma questão jamais se dê por esgotada.
Ser professor é sobretudo ser um provocador. Contra a inércia, contra o estabelecimento, contra qualquer tipo de ordem proprietária, autoritária, violenta e destrutiva. A vida é o eterno movimento, e só o movimento pode nos libertar.
Nestes tempos de esgotamento geral, que urgem como nunca por mudanças, que estas venham através de uma nova educação e contando sempre conosco, professores - espíritos críticos em movimento.
Saudações à todos dessa luta - professores deste mundo!

(RL)

29 de setembro de 2013

Mujica

Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.
Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.
Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.
Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.
Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.
Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.
Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.
Carrego o dever de lutar por pátria para todos.
Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferências e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.
A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.
O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.
Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.
O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.
Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.
Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.
O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.
Civilização contra tempo livre que não é pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.
Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.
Cabe se fazer esta pergunta, ouvimos da biologia que defende a vida pela vida, como causa superior, e a suplantamos com o consumismo funcional à acumulação.
A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.
Todavia, as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os adultos e ter, assim, um território assegurado no futuro. Sobram provas de essas tecnologias bastante abomináveis que, por vezes, conduzem a frustrações e mais.
O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.
Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.
Como se isto fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo, são o vértice do poder mundial. Mais claro, cremos que o mundo requer a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisa, por exemplo, uma larga agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a terra, como convergem as moedas, como se financia a luta global pela água e contra os desertos.
Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global. Quais são os limites de cada grande questão humana. Seria imperioso conseguir consenso planetário para desatar a solidariedade com os mais oprimidos, castigar impositivamente o esbanjamento e a especulação. Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar os pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Virar um neo-keynesianismo útil, de escala planetária, para abolir as vergonhas mais flagrantes deste mundo.
Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…
Precisamos sim mascar muito o velho e o eterno da vida humana junto da ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para enriquecer; com eles, com os homens de ciência da mão, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo inteiro. Nem os Estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, ali está a fonte. Essa ciência que não apetece o lucro, mas que mira o por vir e nos diz coisas que não escutamos. Quantos anos faz que nos disseram coisas que não entendemos? Creio que se deve convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas assim e coisas que não posso desenvolver nos parecem impossíveis, mas requeririam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.
Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá, nem coisas parecidas. Nos restam muitos sacrifícios inúteis daqui para diante, muitos remendos de consciência sem enfrentar as causas. Hoje, o mundo é incapaz de criar regras planetárias para a globalização e isso é pela enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa de todo. Por último, vamos assistir ao refúgio de acordos mais ou menos “reclamáveis”, que vão plantear um comércio interno livre, mas que, no fundo, terminarão construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. A sua vez, crescerão ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, estaremos entretidos e, naturalmente, continuará a parecer que a acumulação é boa, para a alegria do sistema financeiro.
Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.
Por que digo isto? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente a cada seis anos o comércio mundial duplica. Poderíamos seguir anotando dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está acontecendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente, mas com políticos, enfeites culturais, partidos e jovens, todos velhos ante a pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer podemos registrar. Não podemos manejar a globalização porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitação cultural ou se estamos chegano a nossos limites biológicos.
Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou ao menos condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada, porque nem se quer tivemos filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.
A cobiça, tão negatica e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.
Porque se há uma característica deste bichinho humano é a de que é um conquistador antropológico.
Parece que as coisas tomam autonomia e essas coisas subjugam os homens. De um lado a outro, sobram ativos para vislumbrar tudo isso e para vislumbrar o rombo. Mas é impossível para nós coletivizar decisões globais por esse todo. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da espécie. Aclaremos: o que é “tudo”, essa palavra simples, menos opinável e mais evidente? Em nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmas que os homens são iguais, que ninguém é mais que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento da gente que anda pelas ruas, do povo comum.
Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, por tanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias.
Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua.
Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os gobernos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.
A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém. O jogo desse e de outros fatores nos retém na pré-história. E, hoje, é impossível renunciar à guerra cuando a política fracassa. Assim, se estrangula a economia, esbanjamos recursos.
Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.
Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, esbanjamento de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmo-nos pessoalmente. E creio que seria uma inocência neste mundo plantear que há recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, novamente, se fôssemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que a dessem para os mais fracos, garantia que não temos. Aí haveria enormes recursos para deslocar e solucionar as maiores vergonhas que pairam sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, onde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.
As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.
Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, desarraigam-na da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.
Amigos, creio que é muito difícil inventar uma força pior que nacionalismo chovinista das grandes potências. A força é que liberta os fracos. O nacionalismo, tão pai dos processos de descolonização, formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos disso por toda a parte.
A ONU, nossa ONU, enlanguece, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta. Mostro um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem, em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz em todos os países da América Latina. E ali estamos, onde nos pedem que estejamos. Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem, enquanto viver em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.
Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal deveria ter um governo para a humanidade que superasse o individualismo e primasse por recriar cabeças políticas que acudam ao caminho da ciência, e não apenas aos interesses imediatos que nos governam e nos afogam.
Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.
Há poucos dias, fizeram na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos. Cem anos que está acesa, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem.
Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.
O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.
Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.
Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso “nós”.
Obrigado. 
 
Jose "Pepe" Mujica 
 
* Presidente da República Oriental do Uruguai; Assembléia da ONU - 2013