... ou “Memórias de um Tempo Inocente”.
Falar sobre isso é falar sobre uma
das lembranças mais remotas de minha vida, como o dia que minha mãe me deixou
na escola pela primeira vez (com cinco anos de idade). Essa é a lembrança mais
antiga que tenho em mim. E a lembrança de Plínio é a segunda lembrança mais
antiga que guardo. Afinal, estou falando de meu primeiro amigo, daqueles casuais,
fora do tradicional círculo social imãos-primos-vizinhos da infância caseira e
bairrista de uma criança que parte daí para conhecer o mundo, iniciando a
peregrinação pela escola.
Era 1980 e, através de um malabarismo de minha mãe, eu havia ingressado no
primeiro ano do primário numa escola pública no centro da minha cidade, nas
chamadas “escolas modelo”, que eram escolas “diferenciadas” (desde programa,
professores, materiais didáticos, infraestrutura e até refeição) para as elites
da grande São Paulo, pois para matricular-se nelas, era necessário comprovar
endereço próximo à escola (e as mesmas ficavam apenas em bairros mais
“nobres”). Claro, forjávamos um endereço falso para isso. Dada a problemática
do transporte frente ao custo-benefício, no segundo ano primário (hoje
“básico”) fui transferido por meus pais para outra escola pública em meu
bairro.
Eu devia ter meus sete anos de
idade, e agora estudava há uns cinco quilômetros de nossa casa. Eu ia a pé para
escola junto com outros moleques do bairro, saímos no mesmo horário e íamos no
caminho juntando e engrossando a tropa. Ato impensável pros dias de hoje. Eram outros tempos. Tempos de menor inchaço e
caos urbano. Tempos em que passávamos o dia brincando a solta pelas ruas. Tempos
de recessão e dificuldades pelo rescaldo do arrocho salarial acumulado durante
décadas do “milagre econômico” da ditadura militar. Escola particular para os
filhos não listavam no orçamento de um casal trabalhador de classe média baixa,
quanto mais transporte escolar. Eram luxos impensáveis, hoje tão corriqueiros à
atual denominada geração “Y”. A que não sabe o valor de nada, apenas o preço de
tudo.
Chegado ao novo ambiente (a nova
escola), diferenças chamavam a atenção até mesmo à uma criança de sete anos de
idade (como eu) em comparação à outra escola anterior (a elitizada). Em
primeiro lugar – na nova escola haviam negros. Isso era o mais notório, e daí
partia-se à observação das consequências reais advindas disto, desde as vestes,
as posses, a realidade doméstica e material, os assuntos pessoais de seus
cotidianos na hora do recreio e demais detalhes de classe e étnicos referentes
à gente do meu bairro.
Meu bairro era um bairro proletário
e residencial da classe operária metalúrgica do Grande ABC, constituído por descendentes da formação
demográfica histórica de São Paulo (europeus, nipônicos, negros e nordestinos) ,
formado por casas térreas simples de dois ou três cômodos, além de favelas entremeando
as vilas (muitas sem saneamento, pavimentação, luz e água, como as
“comunidades” de hoje). E essa geografia refletia o panorama social para dentro
da escola – haviam desde alunos filhos de funcionários de grandes metalúrgicas
(familiarmente mais estáveis, com roupas e calçados melhores) à crianças de chinelo de dedo e maltrapilhas,
com peça única de roupa para toda semana (alguns órfãos e filhos de detentos ou
de mães solteiras).
Eu era um moleque tímido (coisa que
se extinguiu na década seguinte em minha biografia) e nesta fase, fiz minha
primeira amizade na escola. Plínio era um garoto tranquilo, miudinho e levado.
Não fazia o tipo dos violentos, que eram em grande número e que carregavam suas
frustrações sociais, traumas pessoais e ódios para o círculo sócio-escolar.
Brigas (violência) eram prática constante ( diferentemente da primeira escola),
e eu e Plínio ficávamos sempre mais de escanteio, só na infantilidade mesmo,
ocupados em viver uma infância inocente
e “impopular”.
Lembro de certa vez que combinamos
de fazer um trabalho na casa dele. Combinei com minha mãe que só voltaria mais
no fim da tarde. Ela topou e pediu o endereço da casa de Plínio por segurança. No
dia combinado, saímos da escola e fomos pra sua casa. Lá conheci sua mãe, e me
marcaram para sempre sua beleza e sua gentileza para comigo, um estranho até
então. Era a primeira vez que eu ia à casa de meu primeiro amigo, e estas memórias
se cristalizam em cheiros, sons e imagens de uma intimidade familiar alheia à
minha até então.
Estudamos juntos por uns dois anos,
e devido a relativa distância de nossas casas, só nos víamos mesmo na escola,
até que depois de umas férias escolares de verão e dada a volta às aulas,
Plínio não apareceu mais na escola.
Fui à sua casa procurá-lo depois deste
primeiro dia de aula. Chamei por várias vezes e não havia ninguém. A casa
parecia desabitada e fui informado por vizinhos que eles haviam se mudado
durante as férias.
Nunca mais vi ou soube de Plínio. Também
nunca soube dos motivos de sua mudança. Mas ele nunca saiu de minha memória,
pois uma amizade inocente, infantil, pura, verdadeira e desinteressada marcam
uma vida toda frente ao mundo que a mim seria revelado à partir da juventude, onde a maioria das
relações sociais se desvelariam permeadas por interesses e clientelismo no
chamado sistema produtivo (ou mercado de trabalho).
Nos próximos anos que se seguiram, viria
a maturidade junto das desilusões graduais da realidade adulta. Vieram os fatos
sociais e econômicos que me despertariam à politização e o gosto incessante pelo
entendimento do mundo, em suas mais complexas variáveis (caminho oposto ao da
maioria do gado social, que é o do estabelecimento, da despolitização e da confortável
alienação à realidade).
Mas por que comecei a falar nisso
agora? E o que minha formação de valores pessoais e consciência social tem a
ver com Plínio?
Há um detalhe que não citei
anteriormente – Plínio é negro.
Meu primeiro amigo nesta vida é um
negro. E eu sou um branco.
Mas onde quero chegar com essa
observação? E qual a provocação e reflexão a ser tratada aqui?
Na verdade, não somos coisa alguma
além de seres humanos. A questão de ser negro ou branco ou o que quer que seja faz
parte de uma construção ideológica racista, a ser demolida através da tomada de
consciência acerca de suas consequências históricas refletidas no presente. E,
para tal, é necessário tomar conhecimento histórico para esta reflexão e tomada
de consciência frente à realidade ignorada, camuflada e negada pela hegemonia
branca nos âmbitos social, político e econômico brasileiros.
Eu era apenas uma criança. Uma
criança inocente, nascida em uma família de descendência europeia, católica,
conservadora, autoritária, ignorante, branca, mediana, despolitizada. E
racista. Ora implícita, e ora declarada e explicitamente racistas, pessoas do
meu círculo social e familiar começaram a me chamar a atenção nestes vindouros
anos pós Plínio que vieram por despertar meu senso crítico ao cotidiano social dentre
o que a sociologia chama de “racismo à brasileira” (racismo velado, não
declarado, presente, atuante, arquitetado e incólume às leis anti-racistas oriundas
da Constituição de 1988.)
Durante os posteriores anos pós
Plínio, descobri dentre várias coisas que o racismo é uma definição “intelectual”
(sic) e ideológica. É algo que é “ensinado”, assim como quase tudo nesta vida,
nos formatando (adestrando) à pseudo-valores ditados pelo status-quo à
sociedade.
E descobri mais coisas relativas ao
racismo, tanto no campo da erudição (com minha 2ª. formação superior em
História, como a formação histórica escravocrata do Brasil), mas sobretudo, no campo da observação
cotidiana destas permanências histórico-ideológicas de preconceito e seus
desdobramentos sociais. Pois, a
existência do ideário racista, não se aprende abstratamente e apenas em livros
e teses de “doutores” da academia eurocêntrica.
Exemplos pessoais e autobiográficos,
mais pungentes e práticos, não me faltaram. Nas “peneiras sociais” que
atravessei, como vestibulares, entrevistas de emprego, promoções profissionais,
aumentos salariais e relações sócio-econômicas em geral, o racismo sempre se
mostrou presente e evidente.
Da boca de um parente muito próximo,
ouvi coisas tão surreais quanto as teses racistas europeias forjadoras de
justificativas imperialistas-civilizatórias na África do século XIX, assim como
as teses jurídico-religiosas apologistas e legitimadoras da escravidão africana
colonial do século XV, à exemplo: “Negros são inferiores, pois a escravidão é a
própria prova de que eles são fracos e se submeteram e se conformaram à isto.” Da boca de outro,
ouvi: “Não sou racista, mas não permitiria que minha filha se relaciona-se com
um negro”. De um conhecido “jurista”, ouvi: “Não sou racista. Já até peguei uns
casos de negros. (!) Minha família até é, e acho natural. É como diz meu avô –
pena que a lei não nos permite mais, pois se não o fosse, teria logo uns três
(escravos) lá em casa”. De uma senhora
mui respeitosa da família, ouvi a sentença: “Cuidado com os pretos. Eles são
gente suja, incapaz e desonesta. Por isso estão onde estão.”
Em todas as salas sociais de classe
média por onde transitei, 90% das empregadas domésticas são negras ou
afrodescendentes . Empregadas estas que nem sequer tinham seus direitos
trabalhistas reconhecidos até ontem, em pleno século XXI, confirmando o ideário
excludente e ausências de políticas e direitos básicos (e que causaram reações
bizarras da mídia e das elites). Há pouco nasceu minha 1ª. filha, e nos últimos
meses frequentei consultórios obstetrícios particulares. Durante nove meses,
duas coisas me chamaram a atenção: nunca vi um paciente negro na sala de espera
(nem sequer na conceituada maternidade, depois), e em todas dezenas de
revistas sobre bebês que folheei neste período, nunca vi uma foto sequer de um
bebê negro em nenhum artigo ou propaganda das edições. Vivo em bairro de classe
média relativamente seguro, e em minha quadra, de cerca de 100 residências,
umas 2 são de propriedade de negros. Por todas as grandes empresas pelas quais
passei durante minha 1ª. carreira profissional, nos quadros de chefia, gerência
e diretoria, 95% dos mesmos eram compostos por brancos. Na universidade na qual
curso minha 2ª. formação - em Humanidades - (a maior da América Latina) o
quadro de professores, alunos e funcionários é composto por uma maioria absoluta
de brancos (em algumas carreiras não há sequer alunos ou professores negros),
refletindo a arquitetura da exclusão histórica e vigente. Isso sem contar sobre
as estatísticas alarmantes de homicídios, sobretudo policial sobre a população
negra e jovem das periferias dos grandes centros urbanos.
É como se comprova no que chamam o
“Teste do Pescoço” – incline o pescoço pra dentro dos mais diversos círculos
sociais privilegiados e observe se há negros. E, “se houverem”, observe ao que
estão relegados e submetidos.
Círculos, círculos, círculos. Ou
melhor: quadrados. Muros invisíveis bem delineados de nosso “apartheid”
tupiniquim.
Por acaso do destino (e não por
regra), eu e Plínio fomos imunizados a esta maldição histórica, já que antes mesmo
de sermos doutrinados ideologicamente pela sociedade acerca da divisão de
“raças” e suas determinantes sócio-econômicas, éramos apenas pequenas pessoas
livres, compartilhando com igualdade e respeito nossas vidas e nossa amizade sincera.
Mas ao tomar minha própria
experiência biográfica, assim como básico conhecimento histórico acerca da formação
da sociedade brasileira e das recorrentes políticas de exclusão dos negros e
nativos indígenas pelos Estados monárquico e republicano após o fim da
escravidão legal, estou mais do que certo em afirmar com muita base e
propriedade que exceções como o acaso do meu destino não são e nem serão
suficientes para romper a maldição do preconceito racista e da arquitetura da
exclusão que são mais do que evidentes na sociedade brasileira, apesar dos limitados
avanços após a fase de redemocratização do país.
Portanto sou totalmente consciente de
que se faz mais do que urgente o fomento de políticas inclusivas, assim como reforço
em educação e conscientização acerca do histórico retrato social desigual e
preconceituoso e combate à hipocrisia do mito da democracia racial brasileira, em
amplo e inesgotável debate cívico nacional em todas e quaisquer esferas
públicas, privadas, institucionais e gerais.
Estou certo de que minha filha, a meu exemplo,
romperá tal maldição histórica em sua trajetória, já que será conscientizada à
tal. Mas, infelizmente, sei que os demais serão reprodutores e mantenedores desta
mesma maldição, dado o fato social mais do que evidenciado e recorrente.
Penso sempre em Plínio, nesses
momentos de reflexão. Penso como terá sido sua trajetória até aqui, onde
adentramos a quatro décadas de existência. Penso se nosso acaso terá tido para
ele o mesmo significado que teve para mim, mesmo sabendo das condições e regras
do jogo desiguais de nossas estradas. Penso em algum dia poder reencontrá-lo em
uma sociedade livre de grilhões mentais e mais igualitária de fato, próxima ao
tão almejado espírito atemporal de liberdade.
Penso acerca da tomada da
consciência negra, frente à histórica, violenta e hegemônica inconsciência
branca. E, ainda mais e além, penso na descoloração das relações humanas
planetárias, nalgum dia enfim tão límpidas, puras e fluentes como a água e o ar
de nossa Mãe única e natural.
Axé!
(RL)