20 de novembro de 2013

A Cor da Amizade


... ou “Memórias de um Tempo Inocente”.

 

Falar sobre isso é falar sobre uma das lembranças mais remotas de minha vida, como o dia que minha mãe me deixou na escola pela primeira vez (com cinco anos de idade). Essa é a lembrança mais antiga que tenho em mim. E a lembrança de Plínio é a segunda lembrança mais antiga que guardo. Afinal, estou falando de meu primeiro amigo, daqueles casuais, fora do tradicional círculo social imãos-primos-vizinhos da infância caseira e bairrista de uma criança que parte daí para conhecer o mundo, iniciando a peregrinação pela escola.

Era 1980 e, através de um malabarismo de minha mãe,  eu havia ingressado no primeiro ano do primário numa escola pública no centro da minha cidade, nas chamadas “escolas modelo”, que eram escolas “diferenciadas” (desde programa, professores, materiais didáticos, infraestrutura e até refeição) para as elites da grande São Paulo, pois para matricular-se nelas, era necessário comprovar endereço próximo à escola (e as mesmas ficavam apenas em bairros mais “nobres”). Claro, forjávamos um endereço falso para isso. Dada a problemática do transporte frente ao custo-benefício, no segundo ano primário (hoje “básico”) fui transferido por meus pais para outra escola pública em meu bairro.

Eu devia ter meus sete anos de idade, e agora estudava há uns cinco quilômetros de nossa casa. Eu ia a pé para escola junto com outros moleques do bairro, saímos no mesmo horário e íamos no caminho juntando e engrossando a tropa. Ato impensável pros dias de hoje.  Eram outros tempos. Tempos de menor inchaço e caos urbano. Tempos em que passávamos o dia brincando a solta pelas ruas. Tempos de recessão e dificuldades pelo rescaldo do arrocho salarial acumulado durante décadas do “milagre econômico” da ditadura militar. Escola particular para os filhos não listavam no orçamento de um casal trabalhador de classe média baixa, quanto mais transporte escolar. Eram luxos impensáveis, hoje tão corriqueiros à atual denominada geração “Y”. A que não sabe o valor de nada, apenas o preço de tudo.  

Chegado ao novo ambiente (a nova escola), diferenças chamavam a atenção até mesmo à uma criança de sete anos de idade (como eu) em comparação à outra escola anterior (a elitizada). Em primeiro lugar – na nova escola haviam negros. Isso era o mais notório, e daí partia-se à observação das consequências reais advindas disto, desde as vestes, as posses, a realidade doméstica e material, os assuntos pessoais de seus cotidianos na hora do recreio e demais detalhes de classe e étnicos referentes à gente do meu bairro. 

Meu bairro era um bairro proletário e residencial da classe operária metalúrgica do Grande ABC,  constituído por descendentes da formação demográfica histórica de São Paulo (europeus, nipônicos, negros e nordestinos) , formado por casas térreas simples de dois ou três cômodos, além de favelas entremeando as vilas (muitas sem saneamento, pavimentação, luz e água, como as “comunidades” de hoje). E essa geografia refletia o panorama social para dentro da escola – haviam desde alunos filhos de funcionários de grandes metalúrgicas (familiarmente mais estáveis, com roupas e calçados melhores)  à crianças de chinelo de dedo e maltrapilhas, com peça única de roupa para toda semana (alguns órfãos e filhos de detentos ou de mães solteiras). 

Eu era um moleque tímido (coisa que se extinguiu na década seguinte em minha biografia) e nesta fase, fiz minha primeira amizade na escola. Plínio era um garoto tranquilo, miudinho e levado. Não fazia o tipo dos violentos, que eram em grande número e que carregavam suas frustrações sociais, traumas pessoais e ódios para o círculo sócio-escolar. Brigas (violência) eram prática constante ( diferentemente da primeira escola), e eu e Plínio ficávamos sempre mais de escanteio, só na infantilidade mesmo, ocupados em  viver uma infância inocente e “impopular”. 

Lembro de certa vez que combinamos de fazer um trabalho na casa dele. Combinei com minha mãe que só voltaria mais no fim da tarde. Ela topou e pediu o endereço da casa de Plínio por segurança. No dia combinado, saímos da escola e fomos pra sua casa. Lá conheci sua mãe, e me marcaram para sempre sua beleza e sua gentileza para comigo, um estranho até então. Era a primeira vez que eu ia à casa de meu primeiro amigo, e estas memórias se cristalizam em cheiros, sons e imagens de uma intimidade familiar alheia à minha até então. 

Estudamos juntos por uns dois anos, e devido a relativa distância de nossas casas, só nos víamos mesmo na escola, até que depois de umas férias escolares de verão e dada a volta às aulas, Plínio não apareceu mais na escola.
 
Fui à sua casa procurá-lo depois deste primeiro dia de aula. Chamei por várias vezes e não havia ninguém. A casa parecia desabitada e fui informado por vizinhos que eles haviam se mudado durante as férias.  

Nunca mais vi ou soube de Plínio. Também nunca soube dos motivos de sua mudança. Mas ele nunca saiu de minha memória, pois uma amizade inocente, infantil, pura, verdadeira e desinteressada marcam uma vida toda frente ao mundo que a mim seria revelado à  partir da juventude, onde a maioria das relações sociais se desvelariam permeadas por interesses e clientelismo no chamado sistema produtivo (ou mercado de trabalho). 

Nos próximos anos que se seguiram, viria a maturidade junto das desilusões graduais da realidade adulta. Vieram os fatos sociais e econômicos que me despertariam à politização e o gosto incessante pelo entendimento do mundo, em suas mais complexas variáveis (caminho oposto ao da maioria do gado social, que é o do estabelecimento, da despolitização e da confortável alienação à realidade). 

Mas por que comecei a falar nisso agora? E o que minha formação de valores pessoais e consciência social tem a ver com Plínio? 

Há um detalhe que não citei anteriormente – Plínio é negro. 

Meu primeiro amigo nesta vida é um negro. E eu sou um branco.  

Mas onde quero chegar com essa observação? E qual a provocação e reflexão a ser tratada aqui?  

Na verdade, não somos coisa alguma além de seres humanos. A questão de ser negro ou branco ou o que quer que seja faz parte de uma construção ideológica racista, a ser demolida através da tomada de consciência acerca de suas consequências históricas refletidas no presente. E, para tal, é necessário tomar conhecimento histórico para esta reflexão e tomada de consciência frente à realidade ignorada, camuflada e negada pela hegemonia branca nos âmbitos social, político e econômico brasileiros. 

Eu era apenas uma criança. Uma criança inocente, nascida em uma família de descendência europeia, católica, conservadora, autoritária, ignorante, branca, mediana, despolitizada. E racista. Ora implícita, e ora declarada e explicitamente racistas, pessoas do meu círculo social e familiar começaram a me chamar a atenção nestes vindouros anos pós Plínio que vieram por despertar meu senso crítico ao cotidiano social dentre o que a sociologia chama de “racismo à brasileira” (racismo velado, não declarado, presente, atuante, arquitetado e incólume às leis anti-racistas oriundas da Constituição de 1988.)  

Durante os posteriores anos pós Plínio, descobri dentre várias coisas que o racismo é uma definição “intelectual” (sic) e ideológica. É algo que é “ensinado”, assim como quase tudo nesta vida, nos formatando (adestrando) à pseudo-valores ditados pelo status-quo à sociedade. 

E descobri mais coisas relativas ao racismo, tanto no campo da erudição (com minha 2ª. formação superior em História, como a formação histórica escravocrata do Brasil),  mas sobretudo, no campo da observação cotidiana destas permanências histórico-ideológicas de preconceito e seus desdobramentos sociais.  Pois, a existência do ideário racista, não se aprende abstratamente e apenas em livros e teses de “doutores” da academia eurocêntrica.  

Exemplos pessoais e autobiográficos, mais pungentes e práticos, não me faltaram. Nas “peneiras sociais” que atravessei, como vestibulares, entrevistas de emprego, promoções profissionais, aumentos salariais e relações sócio-econômicas em geral, o racismo sempre se mostrou presente e evidente. 

Da boca de um parente muito próximo, ouvi coisas tão surreais quanto as teses racistas europeias forjadoras de justificativas imperialistas-civilizatórias na África do século XIX, assim como as teses jurídico-religiosas apologistas e legitimadoras da escravidão africana colonial do século XV, à exemplo: “Negros são inferiores, pois a escravidão é a própria prova de que eles são fracos e se submeteram e  se conformaram à isto.” Da boca de outro, ouvi: “Não sou racista, mas não permitiria que minha filha se relaciona-se com um negro”. De um conhecido “jurista”, ouvi: “Não sou racista. Já até peguei uns casos de negros. (!) Minha família até é, e acho natural. É como diz meu avô – pena que a lei não nos permite mais, pois se não o fosse, teria logo uns três (escravos) lá em casa”.  De uma senhora mui respeitosa da família, ouvi a sentença: “Cuidado com os pretos. Eles são gente suja, incapaz e desonesta. Por isso estão onde estão.” 

Em todas as salas sociais de classe média por onde transitei, 90% das empregadas domésticas são negras ou afrodescendentes . Empregadas estas que nem sequer tinham seus direitos trabalhistas reconhecidos até ontem, em pleno século XXI, confirmando o ideário excludente e ausências de políticas e direitos básicos (e que causaram reações bizarras da mídia e das elites). Há pouco nasceu minha 1ª. filha, e nos últimos meses frequentei consultórios obstetrícios particulares. Durante nove meses, duas coisas me chamaram a atenção: nunca vi um paciente negro na sala de espera (nem sequer na conceituada maternidade, depois), e em todas dezenas de revistas sobre bebês que folheei neste período, nunca vi uma foto sequer de um bebê negro em nenhum artigo ou propaganda das edições. Vivo em bairro de classe média relativamente seguro, e em minha quadra, de cerca de 100 residências, umas 2 são de propriedade de negros. Por todas as grandes empresas pelas quais passei durante minha 1ª. carreira profissional, nos quadros de chefia, gerência e diretoria, 95% dos mesmos eram compostos por brancos. Na universidade na qual curso minha 2ª. formação - em Humanidades - (a maior da América Latina) o quadro de professores, alunos e funcionários é composto por uma maioria absoluta de brancos (em algumas carreiras não há sequer alunos ou professores negros), refletindo a arquitetura da exclusão histórica e vigente. Isso sem contar sobre as estatísticas alarmantes de homicídios, sobretudo policial sobre a população negra e jovem das periferias dos grandes centros urbanos. 

É como se comprova no que chamam o “Teste do Pescoço” – incline o pescoço pra dentro dos mais diversos círculos sociais privilegiados e observe se há negros. E, “se houverem”, observe ao que estão relegados e submetidos. 

Círculos, círculos, círculos. Ou melhor: quadrados. Muros invisíveis bem delineados de nosso “apartheid” tupiniquim. 

Por acaso do destino (e não por regra), eu e Plínio fomos imunizados a esta maldição histórica, já que antes mesmo de sermos doutrinados ideologicamente pela sociedade acerca da divisão de “raças” e suas determinantes sócio-econômicas, éramos apenas pequenas pessoas livres, compartilhando com igualdade e respeito nossas vidas e nossa amizade sincera.

Mas ao tomar minha própria experiência biográfica, assim como básico conhecimento histórico acerca da formação da sociedade brasileira e das recorrentes políticas de exclusão dos negros e nativos indígenas pelos Estados monárquico e republicano após o fim da escravidão legal, estou mais do que certo em afirmar com muita base e propriedade que exceções como o acaso do meu destino não são e nem serão suficientes para romper a maldição do preconceito racista e da arquitetura da exclusão que são mais do que evidentes na sociedade brasileira, apesar dos limitados avanços após a fase de redemocratização do país. 

Portanto sou totalmente consciente de que se faz mais do que urgente o fomento de políticas inclusivas, assim como reforço em educação e conscientização acerca do histórico retrato social desigual e preconceituoso e combate à hipocrisia do mito da democracia racial brasileira, em amplo e inesgotável debate cívico nacional em todas e quaisquer esferas públicas, privadas, institucionais e gerais. 

Estou certo de que minha filha, a meu exemplo, romperá tal maldição histórica em sua trajetória, já que será conscientizada à tal. Mas, infelizmente, sei que os demais serão reprodutores e mantenedores desta mesma maldição, dado o fato social mais do que evidenciado e recorrente. 

Penso sempre em Plínio, nesses momentos de reflexão. Penso como terá sido sua trajetória até aqui, onde adentramos a quatro décadas de existência. Penso se nosso acaso terá tido para ele o mesmo significado que teve para mim, mesmo sabendo das condições e regras do jogo desiguais de nossas estradas. Penso em algum dia poder reencontrá-lo em uma sociedade livre de grilhões mentais e mais igualitária de fato, próxima ao tão almejado espírito atemporal de liberdade. 

Penso acerca da tomada da consciência negra, frente à histórica, violenta e hegemônica inconsciência branca. E, ainda mais e além, penso na descoloração das relações humanas planetárias, nalgum dia enfim tão límpidas, puras e fluentes como a água e o ar de nossa Mãe única e natural. 

Axé!  

 
(RL)

19 de novembro de 2013

O Povo Brasileiro

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o corpo e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e nos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar, no dia seguinte, até à exaustão.

Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos –, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas para trabalhar atento e tenso. Semanalmente, vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação de dedos, do furo de seio, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob 300 chicotadas de uma vez, para matar, ou 50 chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos. Descendentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.



Darcy Ribeiro


em “O Povo Brasileiro”, ed. Companhia das Letras, 1995.