30 de agosto de 2014

Living Colour: "Time´s Up" (1990)

Eu tinha 17 anos quando esse long play caiu na minha mão. Foi um soco na cara. Eu já tinha virado fã imediato da banda desde o álbum de estréia do Living Colour, "Vivid", de 1988. Era o auge do metal em 1990, eu começava a tocar bateria com... bandas de garagem e o cenário era aquele clichê-viciado, pautando as baterias desta fase com dois bumbos, meia dúzia de tontons e 12 pratos. Will Calhoun, na contramão, foi um batera divisor de águas nessa fase - pegada monstra, forte, intensa, técnica mas sem pedância nem clausura de linguagem, mesclava partes pesadas de metal, hard e rock com grooves azeitadíssimos de funk setentista, de soul e de ritmos afros, cunhando assim o estilo denominado pela mídia de "funk metal". Era muita transgressão, liberdade e criatividade pro cenário do showbizz ao redor (metal, trash, hard-rock-laquê), além das temáticas da banda girarem em torno de críticas incisivas ao capitalismo, à meritocracia, à alienação, ao racismo, à desigualdade e exclusão, e mitos de liberdade, cidadania e democracia da sociedade de consumo estadunidense. Em "Wich Way to America?", do Vivid, a banda de quatro músicos negros do gueto novaiorquino do Bronx atestavam - "I look at the T.V., Your America's doing well / I look out the window, My America's catching hell". Em "Pride", deste Time's Up, sentenciavam - "History's a lie that they teach you in school / A fraudulent view called the golden rule / A peaceful land that was born civilized / Was robbed of its riches, its freedom, its pride". Este segundo álbum, o melhor da carreira da banda, trazia produção e composições aprimoradas, como Time's Up, Pride, Elvis is Dead (com Little Richard), Type, Solace of You e This is The Life, todos clássicos de um clássico de uma das (senão "a") melhor banda estadunidense do anos 90. Como a gente dizia antes do MP3 - "um dos meus discos de cabeceira". Trilha sonora pra você ouvir no fone de ouvido, enquanto assiste ao vivo pela TV ao novo velho "Missouri em Chamas".

16 de agosto de 2014

Se Palestinos Fossem Seres Humanos


Se palestinos fossem seres humanos, eles não estariam estirados no chão às centenas após um ataque do exército israelense em Shuja´iya. Se eles fossem seres humanos, os corpos daqueles mortos em Khuza´a, com a pele derretida por conta da intensidade das bombas israelenses fabricadas nos EUA, eles não seriam encontrados empilhados um em cima do outro em um canto de um banheiro.

Se palestinos fosse...
m seres humanos, as equipes médicas não teriam o acesso negado pelos tanques israelenses para atender a dúzias de vítimas, atingidas pelos mísseis de drones israelenses e, teriam sido enterradas, ao invés de ficarem largadas nas ruas para então serem devoradas pelos animais.

Se palestinos fossem seres humanos, eles não teriam sido bombardeados até a morte por Israel, enquanto se refugiavam em uma das sete escolas da ONU atacada até agora, incluindo em Beit Hanoun, em Jabaliya – enquanto famílias dormiam no chão de uma sala de aula – e mais recentemente, em Rafah, enquanto crianças procuravam doces e biscoitos.

Se palestinos fossem seres humanos, suas cidades e vilas não seriam destruídas pelo exército israelense, com suas casas sendo pulverizadas, enquanto famílias sentavam juntas dentro delas.

Se palestinos fossem seres humanos, eles não precisariam carregar em sacos plásticos o resto dos corpos de suas crianças – e nem elas seriam mortas enquanto brincavam na praia, comiam ou até mesmo quando passavam por uma cirurgia em um hospital. Elas não seriam os alvos principais da “guerra de precisão” de Israel.

Se palestinos fossem seres humanos aos olhos de Israel e de outros países, seus assassinos no exército israelense seriam levados à justiça perante a lei internacional.

Eles poderiam estar livres para fugirem da zona de guerra – contidos por paredes de concreto, enquanto milhares de toneladas de bombas israelenses caem do céu sob eles, de estarem protegidos pelas escolas da ONU, de terem acesso à água limpa, eletricidade e itens básicos.

Eles poderiam assistir suas crianças crescerem em paz, vivendo e com dignidade. Nós saberíamos seus nomes, o que elas faziam, o que elas gostavam de fazer e o que elas sonhavam.

Se palestinos fossem vistos como seres humanos, o mundo seguiria os passos de sua extrema resistência, afeto e compaixão – os quais eles se recusam a desistir mesmo em suas condições desumanas.


- Shourideh C. Molavi

http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/08/se-palestinos-fossem-seres-humanos/

15 de agosto de 2014

Perigos Sociais da Mediocridade


Por José Ingenieros



A psicologia dos homens medíocres caracteriza-se por um traço comum: a incapacidade de conceber uma perfeição, de formar um ideal.


São rotineiros, honestos, mansos; pensam com a cabeça dos outros, condividem a hiprocrisia moral alheia, e ajustam o seu caráter às domesticidades convencionais.

Estão fora de sua órbita o engenho, a virtude e a dignidade, privilégio dos caracteres excelentes; sofrem, por isso, e os desdenham. São cegos para as auroras; ignoram a quimera do artista, o sonho do sábio e a paixão do filósofo. Condenados a vegetar, não suspeitam que existe o infinito, para além dos seus horizontes.

O horror do desconhecido ata-os a mil preconceitos tornando-os timoratos e indecisos; nada aguilhoa a sua curiosidade; carecem de iniciativa, e olham sempre para o passado, como se tivessem olhos na nuca.
São incapazes de virtude; ou não a concebem, ou ela lhes exige demasiado esforço. Nenhum afã de santidade consegue pôr em alvoroço o sangue do seu coração; às vezes não praticam crimes, com medo do remorso.
Não vibram em tensões mais altas de energia; são frios, embora ignorem a serenidade; apáticos, sem serem previsores; acomodaticios sempre, nunca equilibrados. Não sabem estremecer, num calafrio, sob uma carícia terna, nem desencadear de indignação, diante de uma ofensa.
Não vivem a sua vida para si mesmos, senão para o fantasma que projetam na opinião dos seus semelhantes. Carecem de linha; sua personalidade se desvanece, como um traço de carvão sob a ação do esfuminho, até desaparecer por completo. Trocam a sua honra por uma prebenda, e fecham a sua dignidade com chave, para evitar um perigo; renunciariam a viver, ao invés de gritar a verdade em face do erro de muitos. Seu cérebro e seu coração estão entorpecidos igualmente, como pólos de um ímã gasto.
Quando se arrebanham, são perigosos. A força do número supre a debilidade individual: mancomunam-se aos milhares, para oprimir todos quantos desdenham encadear a sua mentalidade nos elos da rotina.
Subtraídos à curiosidade do sábio, pela couraça da sua insignificância, fortificam-se na coesão do total; por isso, a mediocridade é, moralmente, perigosa, e o seu conjunto é nocivo em certos momentos da história: quando reina o clima da mediocridade.
Épocas há em que o equilibrio social se rompe a seu favor. O ambiente torna-se refratário a toda ânsia de perfeição; os ideais se emurchecem, e a dignidade se ausenta; os homens acomodaticios têm a sua primavera florida. Os Estados convertem-se em mediocracias; a falta de aspirações para manter alto o nivel da moral e da cultura, vai tornando mais profundo o lamaçal, constantemente.
Embora isolados não mereçam atenção, em conjunto, constituem um regime, representam um sistema especial de interesses irremovíveis. Subvertem a tábua dos valores morais, falseando nomes, desvirtuando conceitos; pensar é loucura, dignidade é irreverência, é lirismo a justiça, a sinceridade é tolice; a admiração, imprudência; a paixão, ingenuidade; a virtude, estupidez.
Na luta das convenções presentes contra os ideais futuros, do vulgar contra o excelente, é comum vêr mesclado o elogio do subalterno com a difamação do conspícuo, pois, tanto uma coisa como outra, comovem, igualmente os espíritos embrutecidos. Os dogmatistas e os servis aguçam os seus silogismos, para falsear os valores na consciência social; vivem da mentira; alimentam-se dela, semeiam-na, regam-na, podam-na, colhem-na. Assim, criam um mundo de valores fictícios, que favorece o auge dos obtusos, assim tecem sua surda teia em torno dos gênios, dos santos e dos heróis obstruindo, nos povos, a admiração da glória. Fecham o curral, cada vez que vibra, nas vizinhanças, o alento inequívoco de uma águia.
Nenhum idealismo é respeitado. Se um filósofo estuda a verdade, tem de lutar contra os dogmatistas mumificados; se um santo quer atingir a virtude, despedaça-se contra os preconceitos morais do homem acomodatício; se o artista sonha novas formas, rítmos ou harmonias, as regulamentações oficiais da beleza embargam-lhe o passo; se o enamorado quer amar, obedecendo ao seu coração, esborôa-se contra as hiprocrisias do convencionalismo; se um juvenil impulso de energia leva a inventar, a criar, a regenerar, a velhice conservadora corta-lhe o passo; se alguém, com gesto decisivo, ensina a dignidade, ladra a turba dos servís; os invejosos corcomem, com sanha perversa, a reputação dos que tomam os caminhos dos cimos; se o destino chama algum gênio, um santo ou um herói, para reconstruir um caminho, as mediocracias, tacitamente arregimentadas, resistem. Todo idealismo encontra, nesses climas, o seu Tribunal do Santo Ofício.


José Ingenieros



trechos de "O Homem Medíocre" (1913)