21 de agosto de 2011

No Caminho, com Maiakóvski

Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. Nos dias que correm a ninguém é dado repousar a cabeça alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz; e nós, que não temos pacto algum com os senhores do mundo, por temor nos calamos. No silêncio de meu quarto a ousadia me afogueia as faces e eu fantasio um levante; mas amanhã, diante do juiz, talvez meus lábios calem a verdade como um foco de germes capaz de me destruir. Olho ao redor e o que vejo e acabo por repetir são mentiras. Mal sabe a criança dizer “mãe” e a propaganda lhe destrói a consciência. A mim, quase me arrastam pela gola do paletó à porta do templo e me pedem que aguarde até que a Democracia se digne a aparecer no balcão. Mas eu sei, porque não estou amedrontado a ponto de cegar, que ela tem uma espada a lhe espetar as costelas e o riso que nos mostra é uma tênue cortina lançada sobre os arsenais. Vamos ao campo e não os vemos ao nosso lado, no plantio. Mas ao tempo da colheita lá estão e acabam por nos roubar até o último grão de trigo. Dizem-nos que de nós emana o poder mas sempre o temos contra nós. Dizem-nos que é preciso defender nossos lares mas se nos rebelamos contra a opressão é sobre nós que marcham os soldados. E por temor eu me calo, por temor aceito a condição de falso democrata e rotulo meus gestos com a palavra liberdade, procurando, num sorriso, esconder minha dor diante de meus superiores. Mas dentro de mim, com a potência de um milhão de vozes, o coração grita - MENTIRA!

(Eduardo Alves da Costa)

8 de agosto de 2011

A Desmemória

#1

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração.

Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade.

Um sistema de desvínculos: para que os calados não se façam perguntões, para que os opinados não se transformem em opinadores. Para que não se juntem os solitários, nem a alma junte seus pedaços.

O sistema divorcia a emoção do pensamento como divorcia o sexo do amor, a vida íntima da vida pública, o passado do presente. Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, nos guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces.

O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias.

Como trágica ladainha a memória boba se repete. A memória viva, porém, nasce a cada dia, porque ela vem do que foi e é contra o que foi. Auíheben era o verbo que Hegel preferia, entre todos os verbos do idioma alemão. Auíheben significa, ao mesmo tempo, conservar e anular; e assim presta homenagem à história humana, que morrendo nasce e rompendo cria.

#2

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (...)

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada.

Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. (...)

A ressurreição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua solução na realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez.

 A revolução social (...) não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século (...) deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes a frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase.


#1 GALEANO, Eduardo. O Livro dos Abraços. 1991.

#2 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. 1852.

7 de agosto de 2011

Chantagem Universal


Interpretação: Antônio Abujamra  -  Autor: José Ortega y Gasset

Pálido Ponto Azul

Por Carl Sagan

A nave espacial estava muito distante de casa, além da órbita do planeta mais afastado e bem acima do plano da eclíptica - que é uma superfície plana imaginária que podemos visualizar como uma pista de corrida onde as órbitas dos planetas ficam principalmente confinadas. A nave afastava-se aceleradamente do Sol a 60 mil quilômetros por hora. Mas, no início de fevereiro de 1990, foi alcançada por uma mensagem urgente da Terra.

Obedientemente, redirecionou suas câmeras para os já distantes planetas. Girando sua plataforma de varredura de um ponto a outro no espaço, tirou sessenta fotografias e as armazenou sob forma digital em seu gravador. Depois, lentamente, em março, abril e maio, radiotransmitiu os dados pra a Terra. Cada imagem era composta de 640 mil elementos individuais (“pixels"), como os pontos em uma fotografia de jornal transmitida por telégrafo ou em uma pintura pontilhista. A nave espacial estava a 6 bilhões de quilômetros da Terra, tão distante que cada pixel levava cinco horas e meia, viajando à velocidade da luz, para chegar até nós. As fotos poderiam ter sido enviadas mais cedo, mas os grandes radiotelescópios na Califórnia, na Espanha e na Austrália, que recebem esses sussurros da orla do Sistema Solar, tinham responsabilidades para com outras naves que transitam pelo mar espacial - entre elas, Magellan, rumo a Vênus, e Galileo, em sua travessia tortuosa por Júpiter.

A Voyager 1 estava tão acima do plano da eclíptica porque, em 1981, passara muito perto de Titã, a lua gigantesca de Saturno. Sua nave irmã, a Voyager 2, fora enviada numa trajetória diferente dentro do plano da eclíptica e, por isso, pudera realizar as célebres explorações de Urano e Netuno. Os dois robôs Voyager exploraram quatro planetas e quase sessenta luas. São triunfos da engenharia humana e uma das glórias do programa espacial norte-americano. Ainda estarão nos livros de história, quando muitos outros dados sobre nossa época já tiveram caído no esquecimento.

O funcionamento das Voyager só estava garantido até o encontro com Saturno. Achei que seria uma boa idéia, logo depois de Saturno, que elas lançassem um último olha para casa. Eu sabia que, vista a partir de Saturno, a Terra pareceria demasiado pequena para que a Voyager distinguisse algum detalhe. O nosso planeta seria apenas um ponto de luz, um pixel solitário, mal distinguível dos muitos outros pontos de luz que a Voyager podia divisar, planetas próximos e sóis distantes. Mas, justamente por causa da obscuridade de nosso mundo assim revelado, valeria a pena ter a fotografia.

Os marinheiros fizeram um levantamento meticuloso das costas litorâneas dos continentes.

Os geógrafos traduziram essas descobertas em mapas e globos. Fotografias de pequenos fragmentos da Terra foram tiradas, primeiro por balões e aviões, depois por foguetes em vôos balísticos curtos e, finalmente, por naves espaciais em órbita - gerando uma perspectiva similar à que obtemos quando posicionamos o globo ocular uns três centímetros acima de uma grande esfera. Embora quase todo mundo aprenda que a Terra é um globo ao qual estamos, de certa forma, presos pela gravidade, a realidade de nossa circunstância só começou, de fato, a penetrar em nosso entendimento com a famosa fotografia Apollo 17 na última viagem de seres humanos à Lua.

Ela se tornou uma espécie de ícone da nossa era. Ali está a Antártida, que norteamericanos e europeus consideram a parte extrema da Terra, e toda a África estirando-se acima dela: vemos a Etiópia, a Tanzânia e o Quênia, onde viveram os primeiros seres humanos. No alto, à direita, estão a Arábia Saudita e o que os europeus chamam Oriente Médio. Mal e mal espiando no topo, está o mar Mediterrâneo, ao redor do qual surgiu uma parte tão grande de nossa civilização global. Podemos distinguir o azul do oceano, o amarelo-ocre do Saara e do deserto árabe, o castanho-esverdeado da floresta e dos prados.

Não há, entretanto, sinal de seres humanos na fotografia, nem de nosso reelaboração da superfície da Terra, nem de nossas máquinas, nem de nós mesmos: somos demasiado pequenos e nossa política é demasiado fraca para sermos vistos por uma nave espacial entre a Terra e a Lua. Desse ponto de observação, nossa obsessão com o nacionalismo não aparece em lugar algum. As fotografias Apollo da Terra inteira transmitiram às multidões algo bem conhecidos dos astrônomos: na escala de mundos - para não falar da escala de estrelas ou galáxias - os seres humanos são insignificantes, uma película fina de vida sobre um bloco obscuro e solitário de rocha e metal.

Parecia-me que outra fotografia da Terra, tirada de um ponto de centenas de milhares de vezes mais distantes, poderia ajudar no processo continuo de revelar-nos nossa verdadeira circunstância e condição. Os cientistas e filósofos da Antigüidade clássica tinham compreendido muito bem que a Terra era um simples ponto num vasto cosmo circundante, mas ninguém jamais a vira nessa condição. Era a nossa primeira oportunidade (e também a última em várias décadas).

Muitos membros do Projeto Voyage da NASA deram o seu apoio. Vista a partir da orla do

Sistema Solar, porém, a Terra fica muito perto do Sol, como uma mariposa enfeitiçada ao voar ao redor de uma chama. Apontaríamos a câmera para tão perto do Sol, a ponto de correr o risco de queimar o sistema vidicon da nave espacial? Não seria melhor esperar ate que fossem obtidas todas as imagens cientificas de Urano e Netuno, se a nave espacial chegasse a durar tanto tempo?

E assim, esperamos - o que foi bom - de 1981, em Saturno, a 1986, em Urano, e a 1989, quando as duas naves espaciais já tinham passado das órbitas de Netuno e Plutão. Por fim, chegou a hora. Havia, porém, algumas calibrações instrumentais a serem feitas primeiro, e esperamos um pouco mais. Embora a nave espacial estivesse nos lugares certos, os instrumentos ainda funcionassem maravilhosamente, e não houvesse outras fotografias a serem tiradas, alguns membros do projeto se opuseram. Não era ciência, diziam. Descobrimos, então, que, numa NASA em dificuldades financeiras, os técnicos que projetavam e transmitiam os comandos de rádio para a Voyager estavam para ser dispensados imediatamente ou transferidos para outras tarefas. Se quiséssemos tirar a fotografia, tinha de ser naquele momento. No último minuto - na verdade, no meio do encontro da Voyager 2 com Netuno - o então administrador da NASA, contra-almirante

Richard Truly, interveio e garantiu que as imagens fossem obtidas. Os cientistas espaciais Candy Hansen, do Laboratório de Propulsão a Jato da NASA (JPL), e Carolyn Porco, da Universidade do Arizona, projetaram a seqüência de comandos e calcularam os tempos de exposição da câmera.

Assim, aqui estão elas - um mosaico de quadrados dispostos sobre os planetas e uma coleção heterogênea de estrelas mais distantes ao fundo. Não só conseguimos fotografar a Terra, mas também outros cinco dos nove planetas conhecidos que giram em torno do Sol. No brilho deste, perdeu-se Mercúrio, o mais próximo. Marte e Plutão eram demasiado distantes. Urano e Netuno são tão indistintos que, para registrar a sua presença, foram necessárias longas exposições; conseqüentemente, devido ao movimento da nave espacial, suas imagens não ficaram nítidas. Essa seria a imagem eu os planetas ofereceriam a uma espaçonave alienígena que se aproximasse do Sistema Solar depois de uma longa viagem interestelar.

A partir dessa distância, os planetas parecem apenas pontos de luz, nítidos ou não - mesmo através do telescópio de alta resolução a bordo da Voyager. São como os planetas vistos a olho nu da superfície da Terra; pontos luminosos, mais brilhantes que a maioria das estrelas. Durante um período de meses, a Terra, como os outros planetas, pareceria mover-se entre as estrelas. Olhando simplesmente para um desses pontos, não se pode dizer como ele é, o que existe na sua superfície, qual foi seu passado e se, neste momento em particular, alguém vive ali.

Devido ao reflexo da luz do Sol na nave espacial, a Terra parece estar pousada num raio de luz, como se nosso pequeno mundo tivesse um significado especial. Mas é apenas um acidente de geometria e óptica. O Sol emite sua radiação eqüitativamente em todas as direções. Se a foto tivesse sido tirada um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, nenhum raio de sol teria dado mais luz à Terra.

E por que essa cor cerúlea? O azul provém em parte do mar, em parte do céu. Embora transparente, a água em copo absorve um pouco mais de luz vermelha que de azul. Quando se tem dezenas de metros da substância ou mais, a luz vermelha é totalmente absorvida e o que se reflete no espaço é sobretudo o azul. Da mesma forma, o ar parece perfeitamente transparente num pequeno campo de visão. Ainda assim - algo que Leonardo da Vinci era mestre em pintar - quando mais distante o objeto, mas azul ele parece ser. Por quê? O ar dispersa muito melhora a luz azul do que a vermelha. O matiz azulado, portando, provém da atmosfera espessa, mas transparente, da Terra e de seus oceanos profundos e líquidos. E o branco? Em um dia normal, a Terra tem quase metade de sua superfície coberta por nuvens brancas de água.

Nós podemos explicar o azul-pálido desse pequeno mundo porque conhecemos muito bem. Se um cientista extraterrestre, recém chegado às imediações do nosso Sistema Solar, poderia fidedignamente inferir oceanos, nuvens e uma atmosfera espessa, já não é tão certo. Netuno, por exemplo, é azul, mas por razões inteiramente diferentes. Desse ponto de observação, a Terra talvez não apresentasse nenhum interesse especial.

Para nós, no entanto, ela é diferente. Olhem de novo para o ponto. É ali. É a nossa casa.

Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “lideres supremos”, todos os santos e pecadores da historia da nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração desse ponto. Pesem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes de um canto desse pixel contra os habitantes mal distinguíveis de algum outro canto, em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.

Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, tudo é posto em dúvida por esse ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, em meio a toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.

A Terra é, até agora, o único mundo conhecido que abriga a vida. Não há nenhum outro lugar, ao menos no futuro próximo, para onde nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Goste-se ou não, no momento a Terra é o nosso posto.

Tem-se dito que a astronomia é uma experiência que forma o caráter e ensina humildade.

Talvez não exista melhor comprovação da loucura das vaidades humanas do que esta distante imagem de nosso mundo minúsculo. Para min, ela sublinha a responsabilidade de nos relacionarmos mais bondosamente uns com os outros e de preservarmos e amarmos o pálido ponto azul, o único lar que conhecemos.


SAGAN, Carl. Pálido ponto azul. São Paulo : Companhia das Letras, 1996. Cap.1 - "Você Está Aqui"