“- Bombeiro!”
Essa foi a resposta que dei
durante toda minha infância e até o início da adolescência, quando questionado
sobre “o que queria ser quando crescer”. Não, eu não queria ser soldado. Nem
engenheiro, nem magistrado. Eu não queria ser jogador de futebol na Europa. Também
não queria ser qualquer tipo de celebridade, como a maioria das crianças, hoje. E tão
pouco pensava materialmente no futuro (vida adulta monetária). Ainda não havia
sido adestrado a isso, a “vida” ainda não havia sido ditada à mim como uma
regra do sistema, fora e apartada do presente, como uma contínua promessa
futura. As crianças, dentro de sua brutal e livre sinceridade (vista como
defeito a ser socialmente reparado) realmente dizem quem são quando dizem o que
querem fazer de suas vidas.
Cresci num bairro de periferia, onde vivo até hoje. Filho de operário e
professora, com mais dois irmãos pra rachar um quarto. Muitas contas à vencer, casa
comprada em centenas de prestações, grana dos pais contada pras despesas do mês,
aluno de escola pública, arroz, feijão e ovo no cardápio diário (aos fins de
semana tinha carne) e um par de tênis apenas no armário (o qual muitas vezes era
perseguido pelo maldito furo na sola), jogando bola e fubeca com os moleques na
rua e no terrão perto de casa como diversão (algo hoje inconcebível ao paulistanóide
médio).
Terminando o ensino fundamental (ginásio, como era chamado na época), meu
pai teve comigo a velha conversa que todo pai operário tem com seu filho sobre
o futuro, o presente, a condição, a realidade do sistema e a necessidade de trabalhar
o quão antes para ajudar financeiramente em casa. Foi quando me foi posto e
aberto o “menu das profissões” à minha frente - eu, um garoto de 13 anos de
idade tendo que “escolher” o que fazer pelo resto de minha curta e breve
existência.
Nessa altura do campeonato (adolescência) eu a havia descoberto e havia me
apaixonado de corpo e alma pela música, mais propriamente o rock, através de discos dos
Beatles abandonados pelos meus tios na casa de meus avós. Eram os anos 80, os gloriosos
anos do rock, do heavy metal e do punk por nossas terras, e havia decidido que queria
ser músico. Só havia um pequeno problema - “bombeiro” e “músico” não constavam
na lista das profissões de sucesso financeiro do cardápio profissional convencional do sistema "produtivo".
Pois afinal, salvar vidas e animar seus espíritos não geram lucro nesse mundo inventado pelos senhores de nosso tempo.
Filho de peão arremessado à concorrência no sistema de ensino médio
técnico público, passei em três vestibulinhos de três gloriosas e excitantes carreiras
profissionais – informática, eletrônica e química. (lembre-se: eu queria ser
bombeiro ou músico). Com um totozinho do velho, acabei optando pela informática
("a profissão do futuro!", nos anos 80). Daí pra frente, foram quase duas
décadas de história. Uma história de uma carreira “bem sucedida”
no plano material e de frustração/insatisfação pessoal, como a da imensa maioria das
pessoas arremessadas e coagidas às restrições existenciais do mercado de
trabalho do sistema produtivo (ou destrutivo) atual.
Curioso é que meu primeiro emprego nesta área (oxalá, hoje noutra),
talvez tenha sido o melhor de todos. Por acaso do destino, meu primeiro emprego
viria a ser o de “professor”. De informática, claro (fazer o quê?), nesses
cursos de microcomputação (que era novidade no final dos ´80). Também
curiosamente, com meu 1º. salário deste trabalho, comprei meu primeiro
instrumento musical, vindo a me tornar músico, paralelamente ao meu emprego
financeiro. Alguns anos mais tarde, e paralelamente também (sempre vivi
múltiplas vidas em uma), me tornei professor voluntário numa ONG assistencial numa
favela próxima à meu bairro, com um projeto de educação cultural à molecada
carente de famílias pobres.
Parece que a profissão de professor insistia em cruzar meu caminho. E olhando
bem, nada mais natural. Afinal, eu queria ser bombeiro - salvar vidas, ajudar
pessoas. E nesse outro rumo descobri um trabalho verdadeiramente útil. Útil à
mim, ao próximo, à sociedade e à Terra. Útil à tudo e à todos, sobretudo na
carreira de Humanidades, à qual me dediquei após amargos 20 anos no mercado
corporativo de informática em segmentos dos setores financeiros e de serviços. Nesta
nova profissão descobri mais que um trabalho. Nela, descobri uma missão, uma
atuação de muita responsabilidade com a comunidade (conceito em extinção no
sistema individual competitivo) e de muita satisfação pessoal. Se numa
profissão “comercial” se ganha algum dinheiro para gastar em aparências e
conquistas supérfluas, numa profissão de “função social” se ganha uma imensa
satisfação existencial, onde a vida é conjugada ao trabalho e ao resgate da dignidade
do espírito humano, esta subtraída nos empregos comercias alienantes do sistema
produtivo.
A missão é árdua, sabemos. Há muitas pedras no caminho a serem superadas,
dentre elas o desdém hierárquico-social pelo educador, a desvalorização da
educação (que não seja a instrução-adestramento técnico científico profissional)
no sistema produtivo em todos seus níveis e a própria dificuldade
material-financeira da profissão de professor, decorrente desta corrupção sistemática e seus desvalores.
Mas nada se compara ao prazer de atuar em educação com o sentimento de
construção de algo intangível materialmente e maior espiritualmente, frente ao
desgosto de atravessar tantas e tantas reuniões de negócios com a certeza do
tempo perdido na breve vida. Nada se compara à satisfação de poder construir com
educação novas possibilidades frente à destruição inerente atual, rumo a um
novo ideário que transforme, revolucione e reverta o catastrófico quadro
planetário do falacioso modelo de progresso imposto pelo sistema, repetido inquestionadamente
e idolatrado por gerações através da História. História, aliás, minha nova
casa. Meu novo endereço. Minha nova vida.
Ser professor de Humanidades não se resume a repassar conteúdos e
conhecimentos convencionados e ditados. Não é simplesmente instruir, no sentido
de ditar verdades pré-definidas. Ser professor é, sobretudo, a
arte de desconstruí-las, mostrando que nada se dá como “natural” ou “normal” e
que tudo é possível no sentido de se trilhar novos caminhos. Educar não
consiste, portanto, no ofício de formatar o pensamento com ditames apropriados
por instituições acadêmicas, privadas ou governamentais, mas na tarefa de potencializar
a capacidade de questionamento e instigar o pensamento crítico à uma sociedade
integrada ao meio natural ao qual pertencemos, e não o contrário em voga.
Educação, assim como a vida, é desta forma uma pergunta, não uma
resposta, tendo no professor o suporte à respostas de uma base de conhecimento
pré-concebido historicamente à construção de novos saberes através do “livre”
pensamento, onde o mesmo jamais esteja restrito à imposições de interesses de
poder material e onde nenhuma questão jamais se dê por esgotada.
Ser professor é sobretudo ser um provocador. Contra a inércia, contra o
estabelecimento, contra qualquer tipo de ordem proprietária, autoritária, violenta
e destrutiva. A vida é o eterno movimento, e só o movimento pode nos libertar.
Nestes tempos de esgotamento geral, que urgem como nunca por mudanças, que estas venham através de uma nova educação e contando sempre conosco, professores - espíritos críticos em movimento.
Saudações à todos dessa luta - professores deste mundo!
(RL)