Reflexões históricas sobre a questão da Inclusão Social
É senso comum atual o mote político e marqueteiro do esporte como inclusão social. Mas é preciso tratar aqui de uma questão nada explícita e muitas vezes até desprezada neste contexto. Afinal, quem e quais são os inclusos? De qual forma? De qual e para qual sociedade ou casta da mesma, e por quais interesses e objetivos?
No esporte, assim como nas mais diversas áreas da cultura humana, observamos historicamente sua utilização de propagação e reprodução das ideologias vigentes através do mesmo sobre as sociedades diversas em sua prática e sua coletividade. Expoente das ideologias de poder desde a antiguidade, o esporte atuou como reprodutor da cultura militar na Grécia antiga em seu cerne através das olimpíadas, onde a maioria das modalidades reproduzia a escola militar grega da época (lutas corporais e armadas, saltos, marchas, corridas de assalto, arremessos de lanças, etc). Foi instrumento de controle social das massas populares através da política do “pão e circo” (panis et circenses) dos imperadores e senadores da Roma antiga através dos jogos de gladiadores, atenuando a insatisfação popular contra os governantes através de espetáculos abertos e gratuitos à plebe. Trascorreu a idade média impulsionando as cruzadas cristãs contra os muçulmanos e judeus, representado através das “justas” (combates armados de cavalaria e infantaria) e evoluiu a seu formato popular na idade moderna através dos desportos de competição, atingindo a sociedade contemporânea capitalista com seu aparato industrial de mercados de consumo.
Esporte na Antiguidade |
No último século (XX), além de reproduzir as ideologias de poder no âmbito social, o esporte também acompanha e se incorpora às transformações sociais, políticas e econômicas numa mesma dinâmica na qual se desenvolvem sua indústria, seu público alvo de consumo, sua demanda comercial e as oportunidades que vinculam sua penetração social pela mídia global de propaganda em massa.
Enquanto alienará as massas, desviando o foco das questões centrais sócio-político-econômicas e canalizando a atenção e o fervor dos anseios populares (sucessivamente frustrados pelo establishment) para dentro das quadras, arenas e estádios (retransmitidos agora em tempo real pelo moderno aparato tecnológico de comunicação e desinformação em massa), também servirá eventualmente de instrumento a alguns de seus personagens que conscientes sobre suas reais condições dentro das lacunas deixadas pelas mesmas tais ideologias (conforme observado por Marx), num revés do qual se servirão do mesmo holofote do espetáculo de alienação para resgatar a tona tais questões veladas à sociedade, em episódios e atos de conscientização individual e coletiva sobre as mesmas.
Com a formação da classe proletária dentro do capitalismo industrial e ampla difusão dos esportes no âmbito social, tal dinâmica ideológica atuará elitizando algumas modalidades em detrimento a vulgarização de outras, conforme valores e tradições da classe dominante. Estarão condicionadas à segregações ou inclusões diversos fatores, como etnia, sexo/gênero, classe social, nacionalidade, conforme a serventia de seu caráter às transformações do mercado esportivo.
A questão racial no esporte atravessará e acompanhará a própria história da luta das castas étnicas segregadas em defesa de seus direitos civis no século XX. Americanos afro-descentes a princípio serão vetados das práticas e competições oficiais, ditadas pelas elites sócio-econômicas caucasianas, ao passo em que estas oportunamente estruturarão um mercado de entretenimento e profissionalizarão o esporte, fundando clubes e ligas profissionais.
Arthur Friedenreich |
Relações de poder político-sociais seriam reproduzidas ideologicamente em similar escala também no cenário político nacional e intercontinental através do esporte. Quando o “time mito do Santos da era Pelé” (fundado por uma elite da cidade homônima em 1912) iniciou em 1966 a primeira de três excursões profissionais de exibição que faria pela África nos quatro anos seguintes exibindo Pelé como a maior estrela do esporte de todos os tempos, o “time mito” seria também utilizado por seus “contratantes” com interesses políticos na região, a exemplo da Costa do Marfim, governada por uma ditadura de partido único representante das elites locais desde sua independência em 1960, assim como no Senegal na 2ª.excursão, usando o time por embaixadores brasileiros para promoção de acordos comercias através dos patrocinadores produtores de café brasileiro, assim também como pela Nigéria, com uma exibição contratada pelo governo militar nigeriano em Biafra, ex-província que havia se declarado independente e acabara de ser derrotada e reanexada à Nigéria.
Algumas evidências ideológicas destas relações de poder e segregação racial-intelectual seriam registradas pelas imprensas que cobriram as excursões, a exemplo da africana que se referia a Edson Arantes do Nascimento como “Rei Pelé”, exaltando sua “inteligência e posicionamento eficaz” (racionalidade), em detrimento a imprensa européia que enfatizava exclusivamente sua “magia e seu encanto” (irracionalidade).
Médici e Pelé (1970) |
Em 1971, ao pronunciar publicamente que estava deixando a seleção brasileira após o tri, notoriamente por questões individuais e pessoais (parar no auge de sua carreira esportiva e se promover na 2ª. fase da mesma como garoto propaganda e empresário), Pelé se viu envolvido num complô difamatório de sua imagem pelos mesmos Médici, Havelange e pela imprensa contra ele. Pelé, que se servira também de muito jogo político (agora através do poder de sua imagem e mito) para garantir a prevalência de sua decisão e autonomia política, declarara seu ato a imprensa em 1976 após toda a fase do embate - “o meu comportamento talvez mostre um caminho a isto”, em referência a seu enfrentamento não violento ao racismo e ao poder dos militares e cartolas, mas como exemplo de êxito civil-social.
Ao passo em que o “mito da democracia racial” começava a se tornar mais explícito e contrastante, o racismo, que no âmbito legal era superficialmente combatido nos países americanos, reproduzia sua prática comum social pela via do esporte, da mesma forma em que a resistência afrodescendente começa a se posicionar contra o mesmo, reflexo da luta secular dos negros pelos direitos civis que se intensificava em meados do século XX.
Nos Estados Unidos, os conflitos raciais se intensificavam na década de 60, assim como os movimentos sociais das comunidades afro-americanas na luta pelos direitos civis, como o surgimento dos “Panteras Negras” em 1966, partido negro revolucionário com finalidade original de patrulhar guetos negros para proteger os residentes dos atos de brutalidade da polícia, tonificava as tensões políticas iniciadas por Malcom X e Martin Luther King na década anterior, um partidário do nacionalismo negro via proposta de separatismo de um estado negro pelo uso da violência, outro em prol da defesa dos direitos de igualdades civis através da não violência, ao melhor estilo pregado por Mahatma Gandhi décadas atrás.
Muhamad Ali e Martin Luther King |
No ano seguinte, culminaria outro protesto simbólico de alcance global expressando a conscientização do movimento social dentro do esporte, desta vez nos jogos Olímpicos de 1968 no México. A ideia de um boicote aos jogos pela comunidade esportiva afro-americana vinha tomando força desde 1965 juntamente com os conflitos raciais intensificados em questão, trazendo em seu ideário a ruptura e radicalização dos atletas negros que rejeitaram a herança de seus ex-campeões pela falta de engajamento e alienação aos movimentos das minorias étnicas, rejeitando a separação entre as esferas esportivas e políticas e rompendo o mito da harmonia social dentro do esporte.
Consolidava-se a formação do Projeto Olímpico para os Direitos Humanos ou OPHR, organização criada pelo sociólogo Harry Edwards entre outros, organização contra a segregação racial norte-americana, sul-africana e no esporte em geral, cujas reivindicações centrais eram: devolução do título a Muhammad Ali, demissão do presidente do comitê olímpico norte-americano e a inclusão de técnicos e dirigentes negros nas equipes e comitê olímpicos.
Tommie Smith e John Carlos em saudação "Black Power" aos Panteras Negras (Jogos Olímpicos do México 1968) |
Na década de oitenta, com a abertura econômica mundial capitalista frente ao fim da guerra fria (queda do comunismo) e dos processos de redemocratização latino-americanos (fim das ditaduras militares), ocorreria a transição do esporte a seu formato contemporâneo do esporte comercial e de entretenimento, num sistema de ligas profissionais, através de contratos publicitários entre times (empresas), mega-corporações de produção de consumo e mídias de comunicação massiva.
Michael Jordan surgiria como novo e mítico ícone do “novo esporte” através do basquetebol (até então considerado uma modalidade marginal, desvalorizado e para negros, recorrendo ao conceito de esporte étnico), numa inovadora fusão oportunista entre instituições do formato supracitado, representadas então por Chicago Bulls, NBA, Nike e ESPN, revolucionando o mercado do esporte onde os atletas ganhariam mais com o marketing do que propriamente com seus salários, vinculando contratualmente “marcas” à imagem do atleta – esporte comercial corporativo. Jordan, por um lado, propagará ao social através da mídia o perfil ideológico neoliberal-capitalista moderno (competitivo, agressivo, vitorioso, individual e bem sucedido), e por outro, será o primeiro atleta afro-americano a furar a barreira racial publicitária, esboçando a aparente questão da inclusão étnica social contra o racismo.
Futuramente em sua carreira, Jordan, ícone máximo do êxito social negro do esporte, se encontraria envolto em posições polêmicas que remeteriam diretamente a questão central do sentido de “inclusão social”, como o episódio no qual se recusou a se pronunciar na imprensa sobre escândalos de seu mega patrocinador Nike referentes a trabalho semi-escravo em suas fábricas rotativas da Ásia (constatando as práticas hediondas da economia corporativa globalizada).
Jordan também viria posteriormente a negar seu apoio a um candidato negro representante da luta pelos direitos civis, se omitindo a questão social negra, sob a justificativa de que “os seus oponentes (do candidato negro) também compravam calçados”, conotando forte caráter de alienação da estrela à questão social, numa visão única e exclusivamente empresarial.
Michael Jordan: Empresário Branco ou Atleta Cidadão Negro? |
Jordan também viria posteriormente a negar seu apoio a um candidato negro representante da luta pelos direitos civis, se omitindo a questão social negra, sob a justificativa de que “os seus oponentes (do candidato negro) também compravam calçados”, conotando forte caráter de alienação da estrela à questão social, numa visão única e exclusivamente empresarial.
Alexandre Ross observaria ainda no contexto contemporâneo da transição ao esporte profissional de contratos publicitários milionários entre equipes, mega corporações de produção de consumo e mídias de entretenimento massivo, a desmitificação de três âmbitos: a) do esporte isento a segregação – ligas esportivas segregadas; b) fim da segregação nas ligas – que foi adotada por motivos financeiros (lucros) pelos proprietários dos clubes; c) harmonia racial dentro de uma equipe de esporte coletivo – postos de liderança midiáticos ocupados por brancos, postos de maior força física e menos intelecto cedidos aos negros, reproduzindo a estrutura ideológica de segregação racial da sociedade dentro do esporte, ao contrário do mito do esporte como integrador.
Voltando às questões iniciais – “Afinal, quem e quais são os inclusos? De qual e para qual sociedade ou casta da mesma, e por quais interesses e objetivos?” - observamos que a inclusão do indivíduo na sociedade qual o cerca, depende direta e indiretamente de vários fatores que não somente a prática esportiva coletiva (senso comum atual), como a exemplos o contexto ideológico, político, econômico e social ao qual o indivíduo se encontra inserido, acesso e garantia a alimentação, educação e direitos civis, formação cultural, oportunidade de trabalho, que formarão o “cidadão” junto do “atleta” num mesmo “indivíduo social”, então integrado efetivamente a uma mesma sociedade igualitária onde o próprio se reconheça e estabeleça relações intrínsecas de via dupla com a mesma, consciente de sua condição e do mundo no qual vive e sobrevive, e não somente lançado à ilusões de “ascensão pelo esporte” projetadas marqueteiramente pela propaganda massiva e interessada às ideologias de poder atuante, acobertando as questões centrais da sociedade global capitalista contemporânea.
Recolher garotos negros pobres das ruas imersos no tráfico, ensinar práticas esportivas, afastá-los das drogas e da violência temporariamente com a promessa de um estrelato esportivo num mercado de trabalho restritíssimo profissionalmente, em meio à observação histórica e toda esta reflexão anterior proposta, tendem a me parecer racionalmente como ações paliativas na sociedade capitalista que não atacam as causas, mas somente camuflam suas consequências. Soluções? Miremos a exemplos factíveis de esporte e sociedade. Pergunte a Fidel.
Ricardo Luiz
Novembro de 2011
Bibliografia:
1. ARMSTRONG, G.; GIULIANOTTI, R. (2004) Footbal in Africa : Conflit, Conciliation and Community.
2. DARBY, P. (2022) Africa Footbal and FIFA: Politics, Colonialism, and Resistance.London: Frank Cass.
3. REMNICK, D. (2000) O rei do mundo: Muhammad Ali e a ascensão de um herói americano. São Paulo: Compania das Letras.
4. HALBESTRAM, D (1999) Michel Jordan: a história de um campeão e o mundo que ele criou. São Paulo: Editora 34
5. ROOS, A. (2006) Les Athletes africains-americains et les mouvements pour l´egalite raciale. Paris: L Harmattan.
6. GALEANO, E. (2002) Futebol ao Sol e à Sombra. São Paulo: Editora LPM.
7. CHAUÍ, M. (1984) O que é ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense
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6. GALEANO, E. (2002) Futebol ao Sol e à Sombra. São Paulo: Editora LPM.
7. CHAUÍ, M. (1984) O que é ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense
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