15 de agosto de 2014

Perigos Sociais da Mediocridade


Por José Ingenieros



A psicologia dos homens medíocres caracteriza-se por um traço comum: a incapacidade de conceber uma perfeição, de formar um ideal.


São rotineiros, honestos, mansos; pensam com a cabeça dos outros, condividem a hiprocrisia moral alheia, e ajustam o seu caráter às domesticidades convencionais.

Estão fora de sua órbita o engenho, a virtude e a dignidade, privilégio dos caracteres excelentes; sofrem, por isso, e os desdenham. São cegos para as auroras; ignoram a quimera do artista, o sonho do sábio e a paixão do filósofo. Condenados a vegetar, não suspeitam que existe o infinito, para além dos seus horizontes.

O horror do desconhecido ata-os a mil preconceitos tornando-os timoratos e indecisos; nada aguilhoa a sua curiosidade; carecem de iniciativa, e olham sempre para o passado, como se tivessem olhos na nuca.
São incapazes de virtude; ou não a concebem, ou ela lhes exige demasiado esforço. Nenhum afã de santidade consegue pôr em alvoroço o sangue do seu coração; às vezes não praticam crimes, com medo do remorso.
Não vibram em tensões mais altas de energia; são frios, embora ignorem a serenidade; apáticos, sem serem previsores; acomodaticios sempre, nunca equilibrados. Não sabem estremecer, num calafrio, sob uma carícia terna, nem desencadear de indignação, diante de uma ofensa.
Não vivem a sua vida para si mesmos, senão para o fantasma que projetam na opinião dos seus semelhantes. Carecem de linha; sua personalidade se desvanece, como um traço de carvão sob a ação do esfuminho, até desaparecer por completo. Trocam a sua honra por uma prebenda, e fecham a sua dignidade com chave, para evitar um perigo; renunciariam a viver, ao invés de gritar a verdade em face do erro de muitos. Seu cérebro e seu coração estão entorpecidos igualmente, como pólos de um ímã gasto.
Quando se arrebanham, são perigosos. A força do número supre a debilidade individual: mancomunam-se aos milhares, para oprimir todos quantos desdenham encadear a sua mentalidade nos elos da rotina.
Subtraídos à curiosidade do sábio, pela couraça da sua insignificância, fortificam-se na coesão do total; por isso, a mediocridade é, moralmente, perigosa, e o seu conjunto é nocivo em certos momentos da história: quando reina o clima da mediocridade.
Épocas há em que o equilibrio social se rompe a seu favor. O ambiente torna-se refratário a toda ânsia de perfeição; os ideais se emurchecem, e a dignidade se ausenta; os homens acomodaticios têm a sua primavera florida. Os Estados convertem-se em mediocracias; a falta de aspirações para manter alto o nivel da moral e da cultura, vai tornando mais profundo o lamaçal, constantemente.
Embora isolados não mereçam atenção, em conjunto, constituem um regime, representam um sistema especial de interesses irremovíveis. Subvertem a tábua dos valores morais, falseando nomes, desvirtuando conceitos; pensar é loucura, dignidade é irreverência, é lirismo a justiça, a sinceridade é tolice; a admiração, imprudência; a paixão, ingenuidade; a virtude, estupidez.
Na luta das convenções presentes contra os ideais futuros, do vulgar contra o excelente, é comum vêr mesclado o elogio do subalterno com a difamação do conspícuo, pois, tanto uma coisa como outra, comovem, igualmente os espíritos embrutecidos. Os dogmatistas e os servis aguçam os seus silogismos, para falsear os valores na consciência social; vivem da mentira; alimentam-se dela, semeiam-na, regam-na, podam-na, colhem-na. Assim, criam um mundo de valores fictícios, que favorece o auge dos obtusos, assim tecem sua surda teia em torno dos gênios, dos santos e dos heróis obstruindo, nos povos, a admiração da glória. Fecham o curral, cada vez que vibra, nas vizinhanças, o alento inequívoco de uma águia.
Nenhum idealismo é respeitado. Se um filósofo estuda a verdade, tem de lutar contra os dogmatistas mumificados; se um santo quer atingir a virtude, despedaça-se contra os preconceitos morais do homem acomodatício; se o artista sonha novas formas, rítmos ou harmonias, as regulamentações oficiais da beleza embargam-lhe o passo; se o enamorado quer amar, obedecendo ao seu coração, esborôa-se contra as hiprocrisias do convencionalismo; se um juvenil impulso de energia leva a inventar, a criar, a regenerar, a velhice conservadora corta-lhe o passo; se alguém, com gesto decisivo, ensina a dignidade, ladra a turba dos servís; os invejosos corcomem, com sanha perversa, a reputação dos que tomam os caminhos dos cimos; se o destino chama algum gênio, um santo ou um herói, para reconstruir um caminho, as mediocracias, tacitamente arregimentadas, resistem. Todo idealismo encontra, nesses climas, o seu Tribunal do Santo Ofício.


José Ingenieros



trechos de "O Homem Medíocre" (1913)

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