2 de julho de 2011

História da Resistência Indígena

Invasão e Escravização na Região Sudeste da América Portuguesa no século XVI

“Imagine um lugar onde as pessoas têm expectativa de vida inferior à de países africanos em guerra, onde a taxa de assassinatos (...) e a taxa de suicídios estão entre as maiores do mundo. (...) Imagine mais: além disso tudo, essa é a terra onde você nasceu, mas que lhe foi retirada à força por pessoas que se instalaram ali com o apoio do governo do seu próprio país, obrigando-o a se refugiar para sobreviver.“

Embora a dissertação anterior possa se parecer com algum relato da invasão portuguesa do atual território litorâneo brasileiro no século XVI, o excerto acima abre uma reportagem da revista brasileira “Caros Amigos” do século XXI (edição 51 do ano de 2010) acerca do genocídio indígena dos remanescentes Guarani-Kaiowá por fazendeiros e latifundiários no atual território do Mato Grosso do Sul, assim como o movimento de resistência indígena, outrora no plano físico, hoje no plano político, constatando um realidade fatídica que se estende por mais de cinco séculos de opressão e resistência.

Recorrentemente estimagtizados como agentes passivos no episódio histórico da invasão lusitana e escravização indígena no sul das Américas no século XVI, seja no ensino secular de História do Brasil e na historiografia conservadora e tradicionalmente eurocêntrica, recorro neste ensaio a fontes documentais da fase inicial colonial e a historiografia moderna, mantendo uma melhor compreensão acerca dos “brasis” e seu movimento de resistência durante a invasão portuguesa pós cabralina no século XVI.

Dentre os movimentos de resistência indígena que eclodiram no período, darei foco aqui a alguns mais representativos em termos de organização e contra-efeitos político-sociais na confrontação direta nativa frente ao invasor europeu, a exemplo da “Confederação dos Tamoios”.

Em linhas gerais, a Confederação dos Tamoios foi um movimento de revoltas e alianças entre povos indígenas do tronco lingüístico tupi, lideradas pela nação indígena Tupinambá em congregação também com os Goitacases, Aimorés e Temiminós, formada por tribos que ocupavam o atual litoral norte paulista, se estendendo desde Bertioga e litoral fluminense, até Cabo Frio, juntamente com tribos situadas ao longo do Vale do Paraíba na Capitania de São Vicente, contra os colonizadores portugueses, entre 1556 a 1567, com registros de incidentes remanescentes desde 1554. O termo "Tamoio" tem origem no vocábulo "tamuya" que em língua tupi significa "os velhos, os idosos, os anciãos", indicando que estes seriam as mais antigas tribos tupis com profundo enraizamento aos seus costumes tradicionais.  Além das nações indígenas, estiveram envolvidos os colonizadores portugueses e os franceses, fase na qual estes últimos ocuparam a Baía de Guanabara, a partir de 1555, para ali estabelecer a colônia da França Antártica.

Durante esta fase embrionária do projeto de colonização portuguesa da costa sudeste tupi, o lusitanos buscaram suprir-se basicamente de duas formas: sendo através do escambo ou da compra de cativos. A via do escambo consistia na troca de bugigangas e quiquilharias européias em troca de suprimentos, extração de matéria-prima ou contingentes de mutirões indígenas para desmatamento e cultivo de lavouras européias. O escambo obteve um bom resultado inicial e foi mais embasado numa relação mais simbólica do que econômica dos tupis para com os lusitanos, porém declinou rapidamente frente ao desinteresse cultural indígena sobre mercadorias de consumo.

De outra forma, os lusitanos buscaram reformular a base da economia colonial através da apropriação direta da mão de obra indígena, sobretudo na forma de escravidão. A princípio estes cativos eram obtidos com consenso jesuítico embasado no preceito das guerras-justas, onde prisioneiros de guerra inter-tribais poderiam ser escravizados como direito aos efeitos das mesmas. Porém, com as crescentes exigências de um número mão de obra permanente resultante do progressivo aumento da superfície preparada visada ao cultivo de cana de açúcar e seu processamento nos engenhos em implantação,  implicaram numa expoente angariação de cativos através dos chamados “saltos”, que consistiam na armação de navios que percorriam a orla marítima com a finalidade de atacar aldeias para captura de índios, que assim seriam vendidos com escravos.

A forma como esses grupos indígenas reagiram ao desencadear do processo colonizador acabou por modelar algumas alianças com os europeus em prol de seus interesses, a exemplo do estabelecimento pacífico dos portugueses frente aos Tupiniquins em São Vicente, em troca de apoio militar dos lusos contra seus inimigos tradicionais, os Tupinambás. Em contrapartida, estes últimos ao verificarem que os portugueses (perós) apoiavam seus rivais, se serviram da mesma estratégia, vindo a se aliarem aos franceses (mair) contra os lusos, ampliando desta forma os confrontos alternados e mesclados entre indígenas e europeus.

Observadas no âmbito sócio-cultural destas sociedades indígenas, algumas peculiaridades consideradas no contexto verteriam um crucial efeito e impacto na desestruturação destas sociedades e na dinâmica social, cultural e política dos nativos, frente às capturas, repressões e desestabilizações nas relações sociais, como exemplos: a divisão sexual do trabalho dos “brasis” que se dava por competência das mulheres nas atividades ligadas ao cultivo da terra (o que ampliaria frontalmente a resistência dos cativos à escravidão), a falta de prisioneiros das guerras tribais (cujo significado implicaria no cerne ritualístico e espiritual, onde os sacrifícios conferiam aos guerreiros incrementos de nomes dos inimigos aos seus), além das sanções jesuíticas contra antropofagia, o papel dos pajés e a poligamia, práticas estas intrínsecas de sua cultura.

A gradual ocupação das terras férteis pelos invasores, as tentativas de imposição do trabalho escravo e a repressão aos seus costumes e tradições criariam fortes obstáculos à manutenção da autonomia dos grupos indígenas e sua relações sociais, gerando movimentos de resistência armada no referido território dos tamoios confederados que afetariam o projeto em voga das capitanias lusitanas.

A tática adotada pela generalidade dos grupos indígenas, baseada na mobilidade de suas hostes terrestres e dos meios navais, consistia na realização de rápidas aportadas, incluindo incursões noturnas destinadas a atacar roças, fazendas e caminhos para capturar colonos ou seus escravos. Esta forma de atuação destinava-se a infundir o terror e espalhar a insegurança nos campos de forma a provocar o seu abandono. Quando julgavam possuir os efetivos suficientes, os indígenas tomavam a iniciativa de cercar as povoações habitadas por portugueses e índios aliados, procurando desalojar os defensores através da utilização de setas incendiárias e nuvens tóxicas de pimenta. No entanto, a gradual substituição das construções de madeira por edifícios em pedra com cobertura de telha, a edificação de estruturas defensivas dotadas de artilharia e a entrada em serviço de navios ligeiros (caravelões, bergantins e outros) armados com canhões impediram que os ameríndios tivessem conquistado uma única vila, apesar das diversas tentativas efetuadas. Essa diferença tecnológica e bélica se daria posteriormente  como fator crucial à suplantação lusitana da estrutura de resistência indígena.

Frente às revoltas iminentes, Brás Cubas, o governador da Capitania de São Vicente sob o governo geral de Mem de Sá, agiu na ampliação de alianças estratégicas, como a exemplo de João Ramalho, agente fundamental à expansão da influência e autoridade dos colonos. Dentre as práticas de alianças indígenas, estava o cunhadismo ou concubinato, através da qual um homem, ao se casar com uma mulher de uma determinada tribo, passava a ser membro dessa mesma tribo. João Ramalho, náufrago português na costa da capitania de São Vicente encontrado pela tribo dos Guaianases casou-se com a filha do cacique Tibiriçá, Bartira, batizada Isabel Dias, em casamento realizado pelo Padre Manuel da Nóbrega, do qual resultaram nove filhos além de outros tantos, de relações poligâmicas com as Guaianases. Com os filhos e parte da tribo, Ramalho estabeleceu postos no litoral para fazer comércio com europeus, vendendo índios prisioneiros de excursões pelo interior para serem escravizados, construindo bergantins, reabastecendo os navios em trânsito e negociando o pau-brasil.

A colaboração dos Guaianases com os portugueses resultou numa forte aliança que possibilitou, entre outros eventos, a fundação da vila de São Paulo de Piratininga, em 1554, pelos jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta e pelo cacique Tibiriçá.

A rivalidade entre as diferentes nações indígenas, associada à necessidade de força de trabalho escrava para o empreendimento da colonização, fez com que portugueses e Guaianases se lançassem sobre os Tupinambás, aprisionando a aldeia do chefe Tupinambá Caiçuru, sendo que todos os tupinambás aprisionados foram levados às terras de Brás Cubas. Com a morte de Caiçuru no cativeiro, seu filho, Aimberê, insuflando uma revolta e conseqüente fuga do cativeiro, indo para as terras da capitania do Rio de Janeiro, e constituindo o conhecido Entrincheiramento de Uruçumirim (como também era conhecida a Confederação dos Tamoios), passando a ser o chefe dessa retaliação contra os portugueses, junto com Cunhambebe. Aimberê reuniu-se, onde hoje é Mangaratiba no litoral sul fluminense, com os demais chefes Tupinambás: Pindobuçu e Koaquira, de Uyba-tyba, Cunhambebe, de Ariró, Guayxará, de Taquarassu-tyba. Sob a liderança de Cunhambebe e com o apoio de outras nações indígenas, como os Goitacases, os Tupinambás organizaram uma aliança contra os Guaianases e os portugueses.

Os franceses forneceram aos tupinambás armas para o confronto, visto que tinham interesse em ocupar a Baía de Guanabara. Com a morte de Cunhambebe durante uma epidemia (das quais as nações indígenas eram atingidas e muitas vezes dizimadas pela falta de imunidade frente a nova inserção virótica e bacteriológica européia), Aimberê passou a ser o líder da Confederação. A estratégia de Aimberê consistiu em ampliar ainda mais a Confederação, de modo a incluir o apoio dos Guaianases. Para isso, pediu a Jagoanharó, chefe dos Guaianases e sobrinho de Tibiriçá, que o convencesse a deixar os portugueses e a se perfilar à Confederação. Tibiriçá teve aparente concordância com o sobrinho e propôs que a Confederação o encontrasse, a fim de desfecharem um ataque final contra os portugueses.

No planalto de Piratininga (atual cidade de São Paulo) uma parte dos Tupiniquins reagia contra a oposição dos inacianos à suas tradições e costumes (descritas anteriormente), bem como a transferência dos moradores de Santo André da Borda do Campo (atuais cidades de São Bernardo do Campo e Santo André) para as margens do Anhangabaú.

Estes conflitos se acentuavam desde 1560, e eclodiram na rebelião do Anhembi em julho de 1562 dirigida por Piquerobi e Jagoanharó, irmão e sobrinho do morubixaba (líder tribal) Martim Afonso Tibiriçá. Os revoltosos puseram cerco à Vila de São Paulo, entretanto, Tibiriçá permaneceu fiel aos portugueses e tendo os seus defensores, comandados por João Ramalho, capitão para a guerra, resistindo ao assédio dos Tupiniquins e desferindo um contra-ataque aos mesmos, resultando em sua derrota e na morte de Jagoanharó. Entretanto, os Tamoios previam a traição do cacique Tibiriçá e posteriormente avançaram sobre os Guaianases e portugueses, infligindo-lhes pesada derrota, que resultou também na morte de Tibiriçá.

Servindo-se de diplomacia a seus interesses de influência e expansão da catequização aos indígenas, os jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta intermediaram uma trégua temporária, sobre a qual os portugueses cederam em libertar os indígenas escravizados, os quais serviriam à catequese. No entanto a perspectiva de desenvolvimento econômico que a “paz” prometia ressurgia com toda força na luta pela mão de obra indígena, caracterizada pela competição direta entre jesuítas e colonos, onde estes últimos atribuíam a resistência indígena ao controle absoluto dos mesmos exercido pelos jesuítas.

Com o fim da trégua, deu-se o fortalecimento da colonização portuguesa, com os portugueses se lançando sobre as aldeias indígenas, matando e escravizando a população. Os Tupinambás foram gradualmente recuando em resistência da investida lusitana e se retirando em direção à baía de Guanabara. Em 1567, com a chegada de reforços para o capitão-mor Estácio de Sá, que fundara, dois anos antes, a vila de São Sebastião do Rio de Janeiro, iniciou-se a etapa final de expulsão dos franceses e de seus aliados Tamoios da Guanabara, resultando na dizimação dos Tupinambás e a morte de Aimberê quando da Guerra de Cabo Frio.

Mesmo com a derrota final dos Tamoios, ficou claro ao empreendimento colonizador português que seria difícil usar os indígenas como força de trabalho, dada a trama sócio-política das rivalidades entre as sociedades tribais e a permanente desvantagem numérica européia, potencializando a possibilidade de rebeliões e de dizimação dos assentamentos coloniais. Além da luta armada, os indígenas adotaram também outras formas de resistência à ocupação territorial, à escravização, à miscigenação e às missões jesuíticas entre outras modalidades de aculturação, adotando formas diversificadas de resistência, como os movimentos migratórios em direção ao sertão, os surtos do profetismo Tupi-Guarani (como a crença na Terra sem Mal, com exemplo de um contingente de 1.200 índios conduzidos por um caraíba numa longa marcha rumo ao território do Peru, onde dez anos mais tarde chegariam com somente 300 sobreviventes), fugas individuais e em massa, e até mesmo suicídio, como a prática tradicional da geofagia (suicídio pro via de ingestão de terra).

Em detrimento à problemática da escravização indígena, viria-se a ampliar dessa forma a prática da escravidão africana, com a prática comercial do escambo, utilizando a troca de pessoas por mercadorias, segundo o modelo econômico do mercantilismo. Sendo a captura do índio um negócio quase interno da colônia, onde freqüentemente até o “quinto” devido (imposto) era sonegado à Coroa, o comércio ultramarino de escravos trazia excelentes dividendos tanto ao governo quanto aos comerciantes e traficantes. Dessa forma, Coroa e jesuítas apoiavam indiretamente ao tráfico negreiro, estabelecendo uma espécie de malha limitante à escravidão indígena.

Desde então, quase cinco séculos se transcorreram na formação do Brasil e da sociedade “nacional (se é que assim podemos chamá-la), e adentramos ao século XXI no âmbito da produção de uma nova historiografia moderna que começa a se desenvolver em contraposição aos mitos de inferioridade de agência e passividade indígenas, seculares na historiografia tradicionalista e reacionária nacional, agora em transposição.

“A perseguição sempre existiu. A vida toda a gente foi castigado e chamado de caboclo. Mas aqui nós nunca deixamos de ser índios. Nunca deixamos de fazer nossa festas, tomar os remédios do mato. Nem de dizer onde eram nossas terras.”, reivindica Maria da Glória de Jesus, rezadeira da aldeia da Serra do Padeiro, do povo Tupinambá, em entrevista à uma revista política de circulação nacional publicada na cidade de São Paulo, no ano de 2010. 
Ricardo Luiz
Junho de 2011

Bibliografia:  

1.     COUTO, Jorge. A Construção do Brasil. Edições Cosmos, Lisboa. 1995
2.     MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra – Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. Companhia das Letras, 1994.
3.     CUNHA, Manuela Carneiro da e MONTEIRO, John Manuel. História dos Índios no Brasil. Companhia das Letras, 2009.
4.     PINSKY, Jaime. Escravidão no Brasil. 20ª. Ed. São Paulo. Ed. Contexto. 2006
5.     MONCAU, Joana; PIMENTEL, Spensy. “O Genocídio Surreal dos Guarani-Kaiowá”. In: Revista Caros Amigos, No. 51. Ed. Casa Amarela. 2010.
6.     NAVARRO, Cristiano. “Caboclo, não. Tupinambá!”. In: Revista Caros Amigos, No. 51. Ed. Casa Amarela. 2010.

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