No entanto, Marx, no
final do século XIX, e Freud, no início do século XX, puseram em questão esse
otimismo racionalista. Marx e Freud, cada qual em seu campo de investigação e
cada qual voltado para diferentes aspectos da ação humana - Marx, voltado para
a economia e a política; Freud, voltado para as perturbações e os sofrimentos
psíquicos -, fizeram descobertas que, até agora, continuam impondo questões
filosóficas. Que descobriram eles?
Marx descobriu que
temos a ilusão de estarmos pensando e agindo com nossa própria cabeça e por
nossa própria vontade, racional e livremente, de acordo com nosso entendimento
e nossa liberdade, porque desconhecemos um poder invisível que nos força a
pensar como pensamos e agir como agimos. A esse poder - que é social - ele deu
o nome de ideologia.Freud, por sua vez, mostrou que os seres humanos têm a ilusão de que tudo quanto pensam, fazem, sentem e desejam, tudo quanto dizem ou calam estaria sob o controle de nossa consciência porque desconhecemos a existência de uma força invisível, de um poder - que é psíquico e social - que atua sobre nossa consciência sem que ela o saiba. A esse poder que domina e controla invisível e profundamente nossa vida consciente, ele deu o nome de inconsciente.
Diante dessas duas descobertas, a Filosofia se viu forçada a reabrir a discussão sobre o que é e o que pode a razão, sobre o que é e o que pode a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento, sobre o que são e o que podem as aparências e as ilusões.
Ao mesmo tempo, a
Filosofia teve que reabrir as discussões éticas e morais: O homem é realmente
livre ou é inteiramente condicionado pela sua situação psíquica e histórica? Se
for inteiramente condicionado, então a História e a cultura são causalidades
necessárias como a Natureza? Ou seria mais correto indagar: Como os seres
humanos conquistam a liberdade em meio a todos os condicionamentos psíquicos,
históricos, econômicos, culturais em que vivem?
(...)
Isso não significa,
como imaginaram durante séculos os colonizadores, que tais culturas ou
sociedades sejam irracionais ou pré-racionais, e sim que possuem uma outra
idéia do conhecimento e outros critérios para a explicação da realidade.
Como a palavra razão
é européia e ocidental, parece difícil falarmos numa outra razão, que seria
própria de outros povos e culturas. No entanto, o que os estudos antropológicos
mostraram é que precisamos reconhecer a “nossa razão” e a “razão deles”, que se
trata de uma outra razão e não da mesma razão em diferentes graus de uma única
evolução.
Indeterminação da
Natureza, pluralidade de enunciados para um mesmo objeto, pluralidade e
diferenciação das culturas foram alguns dos problemas que abalaram a razão, no
século XX. A esse abalo devemos acrescentar dois outros.
O primeiro deles foi
trazido por um não-filósofo, Marx, quando introduziu a noção de ideologia; o
segundo também foi trazido por um não-filósofo, Freud, quando introduziu o
conceito de inconsciente.
A noção de ideologia
veio mostrar que as teorias e os sistemas filosóficos ou científicos,
aparentemente rigorosos e verdadeiros, escondiam a realidade social, econômica
e política, e que a razão, em lugar de ser a busca e o conhecimento da verdade,
poderia ser um poderoso instrumento de dissimulação da realidade, a serviço da
exploração e da dominação dos homens sobre seus semelhantes. A razão seria um
instrumento da falsificação da realidade e de produção de ilusões pelas quais
uma parte do gênero humano se deixa oprimir pela outra.
A noção de
inconsciente, por sua vez, revelou que a razão é muito menos poderosa do que a
Filosofia imaginava, pois nossa consciência é, em grande parte, dirigida e
controlada por forças profundas e desconhecidas que permanecem inconscientes e
jamais se tornarão plenamente conscientes e racionais. A razão e a loucura
fazem parte de nossa estrutura mental e de nossas vidas e, muitas ve zes, como
por exemplo no fenômeno do nazismo, a razão é louca e destrutiva.
Fatos como esses -
as descobertas na física, na lógica, na antropologia, na história, na
psicanálise - levaram o filósofo francês Merleau-Ponty a dizer que uma das
tarefas mais importantes da Filosofia contemporânea deveria ser a de encontrar
uma nova idéia da razão, uma razão alargada, na qual pudessem entrar os
princípios da racionalidade definidos por outras culturas e encontrados pelas
descobertas científicas.
Esse alargamento é
duplamente necessário e importante. Em primeiro lugar, porque ele exprime a
luta contra o colonialismo e contra o etnocentrismo - isto é, contra a visão de
que a “nossa” razão e a “nossa” cultura são superiores e melhores do que as dos
outros povos. Em segundo lugar, porque a razão estaria destinada ao fracasso se
não fosse capaz de oferecer para si mesma novos princípios exigidos pelo seu
próprio trabalho racional de conhecimento.
CHAUÍ, Marilena. “Convite
à Filosofia”. Ed. Ática, São Paulo, 2000.
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