4 de abril de 2012

A “História” de Millôr


O guru se foi, deixando uma lacuna no efetivo intelecto brasileiro, preenchida por algumas de suas obras que coleciono em minha estante, das quais compilo aqui algumas de suas percepções ácidas e irônico-cômicas acerca de um tema do qual tenho me infectado nos últimos tempos.
Saudações Milloreanas!    (RL)


Defesa Prévia

“A história é uma istória”, ou “A história é uma história”, como escrevem os ortodoxos, ou “A história é uma estória”, como inventaram os prémoderninhos(¹), é um pequeno apanhado de idéias razoavelmente idiotas, ou relativamente tolas, que se foram formando em mim, em volta de mim, acima de mim, e por aí afora, nestes últimos quatro ou cinco mil anos. É uma visão do mundo derivada, claro, de que o Homo, que era “faber” e passou a “sapiens”, só terá salvação quando se tornar “ludens”. O que eqüivale a dizer que o bípede implume não tem salvação. É, definitivamente, um animal inviável(²).

De qualquer forma, apesar de admitir que minha visão do cosmo é absolutamente pedratória(³), quero deixar bem claro que a culpa por tudo isso que está aí não é exclusivamente minha.  

1. Os pré-moderninhos resolveram escrever estória em lugar de história para distinguir história de história, se é que me entendem. Nunca tendo ouvido falar de palavras homófonas-homógrafas (homofonógrafas) começaram a escrever história sem o agá, que não incomodava ninguém, e passaram a escrever no lugar do i um e que se pronuncia i.
2. Mas eu não sou.
3. Não confundir com predatória. O meu negócio é mesmo lapidar, atirar pedras.

(...)
Eu sempre gostei de história. Desde criança. Caí na asneira de dizer isso outro dia pro meu neto. Espantado, ele perguntou: “Mas quando o senhor era criança já tinha acontecido muita coisa?” Que é que eu ia dizer? Realmente eu sou do tempo em que o Mar Morto ainda estava agonizando. A sério: sempre estudei a história do passado e acompanhei a do presente. Num certo momento percebi que a história ia indo mais depressa do que eu. Eu ainda estava na primeira Guerra Mundial quando estourou a segunda. Estava começando a me acostumar com o poder de fogo do spitfire e do stuka quando eles estouraram a bomba em Hiroshima. Quando alcancei a Coréia, a história já estava se retirando do Vietnã e os japoneses já vendiam carros pros americanos. É, na minha idade não dá mais pra acompanhar. Sei que teve um quebra-quebra no Golfo, sei que grandes heróis não deixam entregar comida na Somália, sei que estão massacrando gente branca e bem vestida na Bósnia (preta e mal vestida na África, a gente acha perfeitamente natural), mas tudo isso é vago. Confesso que ainda não entendi nem a queda do muro de Berlim.
Parecia tão sólido! Pedreiros ruins os comunistas! Olha, não se pode confiar nem no passado remoto. Os cientistas não acabaram de descobrir a múmia gay? Que coisa! Futucar o cara no lugar indevido cinco mil anos depois.

Difamarem uma múmia! Múmia no meu tempo era respeitável. Queóps, Quéfrem, Ramsés, Tutankamen, Itamar! Eu tremo só de pensar no meu próprio futuro. Porque até aqui, em vida, acho que escapei. Mas fico imaginando daqui a cinco mil anos um fofoqueiro chegando pro outro e
dizendo: “E o Paulo Gracindo, hein? Você viu? Ninguém diria!”
(...)

A história é dos vitoriosos, isso já foi muito dito. O que não foi dito é que a história é, mais que tudo, de quem tem os melhores historiadores. Os romanos, por exemplo, não iam chamar de finos e eruditos os países que, ocasionalmente, os venciam. Nunca deram colher ao inimigo. Átila ficou na história como exemplo de monstruosidade e primarismo intelectual porque obrigou os romanos a pedir pinico-e não tinha um bom press-release.Você conhece algum historiador huno?
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A história é dos vencedores. O soldado que foi anunciar a vitória de Maratona correu 42 quilômetros. A história não registrou quanto correu o soldado que foi anunciar a derrota.
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A história é um tal tecido de mentiras que os colonialistas sempre conseguiram dar a impressão de que todos os países foram descobertos por estrangeiros.
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A História é um troço inventado por historiadores que não concordam com o que outros historiadores inventaram antes.
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A história é uma lenda, só que muito mais mentirosa.
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A história não é mais do que o viaduto do incompreensível para o insabido.
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A história sempre se repetiu. Mas com a energia nuclear, possivelmente o que vai se repetir é a pré-história.
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Não tem história coisa nenhuma. Desde os Evangelhos (que em princípio, nem são considerados história), baseados em fatos irreais, de tradição oral, e, portanto, totalmente deturpados, até os fatos narrados pelos grandes historiadores do passado, como Heródoto (“O Pai da História”)  e Tucídides (“A Tia da História”?), nada há em que acreditar. Os dois últimos narram também coisas fantasiosas, de ouvir dizer, passando pela região em que os fatos aconteceram, quando passavam, cem anos depois. Já para o estudo da história moderna há excesso de dados. Impossível sabê-la.
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O que importa não é a história. É o verbete da história.
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Tudo se perde, a justiça nunca é feita, a história só justifica e ratifica os erros, incongruências e promoções do presente e até se dá ao luxo, uma vez, de 1.000 em 1.000 anos de desfazer uma injustiça. Só pra que os tolos digam que a verdade sempre aparece.
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História não é nada. O homem vive numa terra de ninguém, entre um passado que já era e um futuro que não vai chegar nunca. Os que pretendem ser guias do futuro, apóstolos, profetas, políticos, são todos magos de feira que apontam à multidão o glorioso caminho do Nirvana antes de morrerem com o crânio fraturado por escorregarem em cocô de cachorro.


(Millôr Fernandes)


* FERNANDES, Millôr. 1923-2012. A HISTÓRIA É UMA ISTÓRIA, e o homem o único animal que ri.
* FERNANDES, Millôr. 1923-2012. Millôr Definitivo: A Bíblia do Caos. Porto Alegre. Editora L&PM, 2002.

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